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Sermão em Gênesis 25.21-23 – João Calvino

Ontem vimos como Deus provou a fé de Isaque, antes de dar-lhe algum descendente; ou, seja, ao longo de vinte anos. Agora, por fim, tomemos ciência de que sua oração a Deus não foi sem fruto, visto que Deus ouviu sua súplica, a qual buscava isto: que Deus enviasse o Salvador do mundo por meio da semente que lhe havia prometido. Vejamos bem por qual razão Isaque pôde regozijar-se, porém não da maneira usual. Pois sua esposa fora estéril por muito tempo, e então percebeu que concebera, e que Deus havia declarado que não deixaria sua promessa caducar, e daí entender que isto se lhe concretizava, porquanto tinha em Deus seu recurso. No entanto, notamos uma nova tentação que lhe resultou mais dura e mais penosa de ser suportada, do que se sua esposa permanecesse estéril, porquanto ela concebera dois filhos, os quais se digladiavam e se rivalizavam no ventre dela. Ora, isto era algo mui hediondo, visto ser contra a natureza. E vemos por quê ela disse ainda que lhe seria preferível morrer; e ela falou assim não movida pela impaciência, como se sentisse horríveis tormentos e tristezas a constrangerem-na, mas porque seu olhar se esgueirou para alto. Porquanto ela portava em seu ventre toda a esperança que se poderia ter da salvação do mundo. Ora, nesse exato momento ela percebe nesse combate como se Deus subvertesse tudo, e que dali ele estaria ostentando um sinal de sua ira. Em suma, o fato é por si só detestável: que se travasse tal porfia e batalha no ventre de uma mulher; e isto não surgiu naturalmente, senão que Deus quer agora (como já vimos) fazer a Isaque e a ela, que tudo o que procedesse de sua semente, segundo a carne, seria computado ao número dos fiéis; mas, antes, haveria guerra mortal entre eles. Ora, pois, quando ela viu (no lugar da salvação do mundo em seu ventre) esse sinal da ira divina, e como que uma luta diabólica de inimigos mortais da Igreja, ela não conhecia a totalidade, porém percebia que, se sua concepção visava a tal combate, então era como se Deus estivesse contra ela, e saísse a campo com um exército magistral, dizendo: “Tu és para mim uma criatura detestável, e por isso te lanço para longe de mim, e te rejeito”. Em que situação se acha, pois, quando imagina todas essas coisas? E assim não devemos concluir ser estranho que em tal angústia ela preferisse antes morrer que ver algo tão monstruoso, algo totalmente contrário à ordem da natureza. Não obstante, lemos que nesta tão profunda aflição ela não cessou de recorrer a Deus. E de fato ela obteve uma resposta que lhe trouxe conforto; não que nela não houvesse nenhum misto de tristeza, e sim que Deus modera este sentimento que lhe era tão doloroso no íntimo, e disse que ela levava em seu ventre dois povos; como se quisesse dizer que seu sofrimento não se devia apenas a dois filhos, mas que isto tinha um aspecto mais profundo; ou, seja, que seriam divididos e afastados um do outro. E, conquanto ambos fossem filhos de Abraão, e que fora dito a Abraão que em sua descendência seriam abençoadas todas as nações do mundo, contudo seria indispensável que um descendente de Isaque fosse rejeitado e eliminado de sua Igreja, e por isso, consequentemente, daí adviriam os inimigos da Igreja de Deus. Ora, sem dúvida é verdade que isto teria ferido a ambos, Isaque e Rebeca, com uma tristeza mortal; no entanto, dessa maneira vemos que a bondade de Deus não foi totalmente extinta, e que ele se mostrou fiel naquilo que uma vez pronunciara. Pois ele dissera: “O mais velho servirá ao mais novo”.

Daqui Rebeca ficou sabendo que dela, não importava como, viria essa bendita semente que fora prometida. Veja-se, sucintamente, a totalidade do que aqui se menciona. No entanto, tudo seria obscuro se não fosse declarado particularmente. Notemos, pois, aqui que aqueles que são introduzidos na Igreja nem sempre permanecem nela, como disso já vimos um notável exemplo em Ismael, o filho mais velho de Abraão; não obstante, ele foi banido da família, e declarou-se que não estaria nela. E isto não foi motivado pelas riquezas do mundo, nem pelas possessões que Abraão tinha. Pois ele era rico em gado, em ouro e prata; porém não possuía sequer um palmo de terra. Esta herança, pois, dizia respeito a quê? Dizia respeito à promessa espiritual, a saber, que Deus escolhera a semente de Abraão, o que equivale dizer que este seria “um povo dedicado ao meu serviço; e aos que nascerão dele receberei e aceitarei por meus filhos, a fim de que eu os congregue para a vida eterna”. Portanto, notemos bem como Ismael, com sua primogenitura, é afastado da esperança da vida; e resta unicamente Isaque. E o mesmo se dá com Esaú e Jacó, pois ambos descenderam de Abraão; de fato eram gêmeos, gerados juntos no ventre de sua mãe; no entanto, só um deles é recebido, e o outro, rejeitado; um é escolhido e o outro, reprovado.

Assim, pois, vemos que aqueles que, por algum tempo, desfrutam de um lugar na Igreja, e detêm o título de fiéis e filhos de Deus, podem muito bem ser assim considerados pelos homens, porém não têm seu nome figurando no livro da vida. Deus não os conhece, nem os autentica como seus. Daí sermos admoestados a que não nos vangloriemos na arrogância, nem nos embriaguemos com bestial presunção, quando Deus nos mostrar este favor, introduzindo-nos em sua Igreja; ao contrário, andemos em pureza, e tudo façamos para confirmar nossa eleição e desfrutar de seu testemunho em nosso coração, mediante o Espírito

Santo, e não depositemos confiança apenas no título e aparência externos, os quais venhamos a ostentar aos olhos do mundo; é isso que temos de observar aqui. E, ademais, somos ensinados sobre algo muito superior, e é o que vem em primeiro lugar, a saber: que, embora Deus tenha estabelecido sua aliança com Abraão, não obstante ele quer declarar que isto não era tudo que o levou a fazer uma oferta de sua graça, mas que lhe convinha fazer uma escolha de acordo com sua liberdade, como bem lhe aprouve, e que o resto permaneceria em seu estado de maldição.

E por isso Paulo cita este passo com o fim de aplicá-lo à secreta eleição divina, através da qual, antes da fundação do mundo, ele escolheu para si os que lhe pareceu bem. Ora, esta é uma matéria muito elevada e profunda, mas quando for declarada mais plenamente, todos poderão tirar proveito dela, para que estejamos atentos a ela. E, quanto ao remanescente, aceitemos aquilo que a Santa Escritura nos mostra, com sobriedade, e não queiramos ser mais sábios do que nos é lícito, senão que descansemos naquilo que Deus nos falou; e, além do mais, sejamos humildes, não para replicarmos contra ele, nem exibir nossas fantasias diante dele, como se estivéssemos pleiteando contra Deus, mas para reconhecermos que seus juízos são insondáveis, e não perquirindo além do que nos é permitido.

Ora, cumpre-nos manusear essas coisas de tal maneira, que aquilo que à primeira vista parece obscuro se nos afigure mais fácil. Já vimos que Deus escolhera a semente de Abraão. Ora, se alguém indagar por que ou por quem ele foi levado a agir assim, o mesmo descobrirá que em Abraão não havia mais dignidade que nos demais; como já compendiamos esta matéria com sobeja amplitude. Eis, pois, um privilégio que foi dado a determinada família, não por fruir de algum mérito pessoal, nem por haver Deus encontrado algo em suas pessoas, pelo quê devessem ser preferidos, pois não eram melhores nem mais excelentes que os demais, e sim porque assim lhe foi do agrado. Ora, é bem verdade que isto nos será difícil de digerir, se introduzirmos nosso próprio critério, como ocorre com um grande número de cabeças fanáticas que não conseguem reter esta doutrina. Pois lhes parece plausível replicar contra Deus: “Mas, desse modo, que proveito terão no fim?”. Já notificamos que, neste respeito, devemos cultivar em nós a humildade, a fim de reverenciarmos aquilo que está oculto de nós. E deveras Paulo já nos demonstrou isso sobejamente mediante seu exemplo. Pois, em vez de questionar a matéria, ele clama: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são seus juízos, e quão inescrutáveis, seus caminhos!” [Rm 11.33]. Eis aqui Paulo, totalmente aturdido, pasmo, como que arrebatado acima das nuvens, a contemplar os decretos de Deus, sobre os quais a nenhum homem é lícito pronunciar. Paulo, pois, que era (como se diz) companheiro de anjos, neste caso encontrou-se perplexo e totalmente confuso. E o que se dirá desses miseráveis que raramente tem na ponta de sua língua sequer uma palavra da lei e do evangelho, não obstante vão além de Paulo? E, no entanto, os homens acharão este orgulho em muitos.

Mas, quanto ao que nos toca, voltemos àquilo que aqui nos é mostrado: “Quem és tu, ó homem?”. Quando, pois, fazemos comparação entre Deus e nós: “Quem é Deus?”. Dentro de que espaço o encerraríamos? Seria dentro dos limites de nosso cérebro? Dificilmente teríamos um grama de inteligência, e num instante Deus, ao fechar sua mão, mantém aí o mundo inteiro, como se fosse um grão de pó (no dizer do profeta, Is 45), sem ser abarcado nem pelo céu nem pela terra, o qual possui um poder infinito, e justiça infinita, e sabedoria infinita, e possui conselhos que não podem ser sondados; e, no entanto, ante tudo o faríamos sujeito à nossa tola fantasia? E donde provém tudo isso? Além do mais, quem somos nós? Homens (diz Paulo), por cuja Palavra ele exprime que somos absolutamente nada; como se dissesse: “Como presumes tanto que ouses inquirir dos insondáveis segredos de Deus, visto que nada mais és senão barro e esterco? E, outra vez, o que é teu entendimento? Tu estás saturado de pecado e iniquidade; não passas de um pobre cego; e, no entanto, exigirás que Deus te preste contas, e concluirás que, se não descobres o que ele faz de bom e razoável, então podes acusá-lo, e ele teria que erguer sua mão em teu tribunal?”. Ora, em primeiro lugar, observemos esta admoestação, e saibamos que nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina que não podemos ouvir mal, e fechar nossos ouvidos para inquirir e sondar essas coisas que era de seu agrado conhecêssemos; porém, que sejamos precavidos de ir além disso. Pois não há ímpeto tão profundo e ultrajante do que quando queremos saber mais do que Deus quer mostrar-nos. E, além do mais, teremos trançado um lindo fio se aplicarmos nisso todos os nossos sentidos e todos os nossos estudos; se é que o alcançaremos. Isto sempre nos envolverá tanto mais num labirinto e confusão, a menos que tenhamos a diretriz de Deus a indicar-nos o caminho.

Mantenhamos, pois, este meio termo, a saber, ouvir somente aquilo que Deus nos propôs; e, tão logo ele feche sua boca, tenhamos todas as nossas intuições fechadas e cativas, e não empreendamos saber mais do que ele tiver-nos pronunciado. Agora, pois, vejamos como a estirpe de Abraão foi escolhida antes que o resto do mundo, já que Deus assim o quis; mas isto ainda não bastava, porque cumpria que sua soberana eleição nos fosse ainda mais confirmada. E é isto que aqui nos é mostrado na pessoa de dois irmãos. Pois eis Rebeca gerando Jacó e Esaú: porventura um era melhor que o outro? Paulo expande assim este texto: “E ainda não eram os gêmeos nascidos” [Rm 9.11].

Como, pois, poderiam ter obtido favor e graça diante de Deus por seus méritos? Pois Jacó não tinha feito bem nem mal mais que Esaú. Por que, pois, Deus faz dele o maior? Não nos cabe entrar em disputa mais profunda em torno desta matéria, a não ser para venerar com espanto o secreto conselho de Deus, através do qual ele achou por bem eleger; e, aos demais, ele rejeitou. Vejamos, pois, como Deus ainda daria maior glória e beleza à sua misericórdia, quando escolheu a Jacó em vez de Esaú. Pois deveras ele bem que poderia ter posto Jacó na dianteira quando as crianças nascessem do ventre de sua mãe. Os homens podem entender bem que isto se deu não por alguma aventura, como lemos no Salmo 22.9: “Contudo, tu és quem me fez nascer; e me preservaste, estando eu ainda no seio de minha mãe”.

E Deus manifesta um singular poder quando as crianças entram no mundo. E por que, então, ele não permite e ordena que Jacó desfrute do privilégio da primogenitura? Pois isto seria satisfatório, visto que ele pretendia banir Esaú da Igreja, e Jacó teria de permanecer aí e ser o sucessor de seu pai Isaque e de Abraão. E por que Deus, então, o deteve e o fez inferior a seu irmão, no tocante à lei da natureza, para mais tarde o colocar acima dele? Nisto vemos que Deus quis obliterar toda a glória do homem, pois ele quer que toda altivez seja lançada abaixo e que os homens nada apresentem de propriamente seu e não venham a dizer: “Eu tenho obtido esta ou aquela vantagem. Eu a obtive por minha própria indústria”.

Vemos, pois, aquilo que eu já toquei de leve, ou, seja, que temos aqui um espelho, no qual visualizamos que todos os que são da Igreja chegaram aí não por sua própria virtude, e que não obtiveram este favor por seus méritos pessoais, senão que Deus os escolheu antes que nascessem. Vejamos, pois, sucintamente o que já ressaltamos em outro lugar.

Ora, pois, aqui alguém poderia nutrir alguma dúvida. Pois Moisés diz expressamente que isto se estendeu a dois povos, e que não dizia respeita só a Jacó e a Esaú, a saber, que esta luta, que promoveu um combate no tocante às suas pessoas, na verdade era com respeito a seus sucessores e a cada um dos componentes de sua posteridade. Ora, aconteceu que muitos que descenderam de Jacó foram, não obstante, rejeitados. Pois ele deteve o que é aqui expresso, a saber, que a estirpe e prole de Jacó foram escolhidas, e que a de Esaú foi rejeitada; e, no entanto, é possível ver que a maioria dos que descenderam de Jacó foi deserdada de Deus, e que ele os declarou filhos bastardos, filhos de uma meretriz, e como tais eram oriundos de fornicação, e que de modo algum lhe pertenciam, e que para eles era algo fútil gloriar-se ou gabar-se de seu nome. Ora, como é possível que estes andem juntos? Observemos que Deus arma tal espetáculo ante os olhos de Jacó e Rebeca para mostrar-lhes qual seria a condição e o estado da Igreja. Pois Deus, em poucas palavras, lhes testifica que sua Igreja procederia de Jacó, e não que todos os que fossem gerados de sua carne seriam a Igreja; mas bastava que ele permanecesse aí, e que Deus o guardasse; e que Esaú foi excluído de vez, como mais adiante veremos. Isto será mais bem entendido pela exposição que Paulo faz, cuja expressão reza assim: “porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” [Rm 9.6]. Significa que não pertencem ao povo de Deus, pois ele tinha dois nomes, como veremos mais adiante, a saber, Jacó e Israel. E aconteceu que, antes que os filhos nascessem, Deus operava a cisão entre os dois, e mostra que este não é um só corpo, e que ambos não seriam unidos, mas que um já estava reservado, e que o outro já estava rejeitado.

Paulo, pois, entendia que, dos nascidos de Jacó, nem todos eram os eleitos de Deus, pois ele nos remete ao princípio, e diz que um era separado do outro pelo secreto conselho de Deus, e

que não podemos compreender nem apresentar a razão de tal fato; visto que ele (como eu já disse) detém sua liberdade, de tal sorte que é sobejamente suficiente que a Igreja seja gerada de sua estirpe, ainda quando nem todos lhe pertencessem. Já declaramos que havia uma dupla graça ou favor nesta estirpe de Abraão: uma era que Deus, em termos gerais, declarou que seria seu Pai. A circuncisão era igualmente comum a todos eles. Ora, a circuncisão não era sem efeito, porém dava testemunho da remissão dos pecados e da justiça que todos os fiéis obteriam pela mediação de nosso Senhor Jesus Cristo. Ora, Ismael foi circuncidado; e, no tocante a Deus, ele recebeu o sacramento que poderia assegurar-lhe que Deus o havia incluído no número de seus filhos; que ele era membro de Jesus Cristo; que a maldição que contraíra de Adão foi abolida; sim, mas isto de modo algum o isentava. No que diz respeito a Esaú, e de toda sua estirpe, o que quer que ela fosse, não devemos desprezar o benefício que ele mostrou para com toda a estirpe de Abraão. Como em nossos dias, quando falamos da inestimável bênção que Deus nos outorgou, quando seu evangelho nos foi pregado, isto mesmo se dirá a todos indiferentemente. Os homens dirão que Deus usou de uma mui singular mercê para conosco; visto que ele nos iluminou por meio de sua Palavra, que devemos conhecer o caminho da salvação. Entrementes, vemos outros que perambulam nas trevas e confusão, como se Deus os esquecesse e os fizesse totalmente proscritos. Eis os papistas, se bem que vivam saturados de orgulho e rebelião, contudo são arremessados por Satanás, de um lado para o outro, para que não conheçam nem o caminho, nem o rumo. E, entrementes, Deus nos chama a si diariamente, e há menção de sua aliança, para que saibamos que ele é sempre misericordioso para conosco, e para que o invoquemos com plena certeza, sem duvidarmos, senão que ele será nosso Pai.

Eis, pois, um benefício que não devemos estimar levianamente; e, no entanto, há um grande número para o qual este [benefício] é sem validade, senão para a condenação. Pois a ingratidão seria ainda maior, caso se rebelassem contra Deus e desdenhassem de receber o favor paternal que ele lhes tem oferecido. Assim, pois, contemplemos esse favor que já nos foi outorgado, como aquele que foi outorgado à estirpe de Abraão; no entanto, havia ainda uma segunda graça, a qual deve restringir-se a estes limites, a saber, que Deus, do seio desta estirpe, escolheu os que bem lhe aprouve escolher, quando recebeu para si a Isaque, e Ismael não achou lugar em sua casa. Se bem que ele poderia ter sido, por algum tempo, membro de sua casa; porém, no fim, foi eliminado.

O mesmo se pode dizer dos filhos de Quetura. Se bem que Esaú fosse o primogênito, contudo Deus o deixou fora. Vejamos, pois, um segundo favor concedido à família de Abraão, a saber, que Deus mantinha para si os que ele aprouve salvar. Pois Jacó era como que a raiz deste tronco que brotou mais tarde. E observemos ainda por qual motivo todos os eleitos figuravam em sua pessoa, e que Deus nos indica que isso não se deve a eles mesmos, e sim está no fato de que ele lhes confere sua bondade, e que não podem gabar-se de que se deveu à sua própria iniciativa que alcançassem a salvação, e sim que foram atraídos para ela; sim, visto que foram escolhidos antes da fundação do mundo e, consequentemente, antes de seu nascimento.

Eis por que Paulo, nesta passagem que citou, para uma declaração mais completa, ele anexa o testemunho de Moisés: “Farei passar toda a minha bondade diante de ti e te proclamarei o nome do Senhor; terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer” [Ex 33.19]. É como se isso interrompesse o fluxo do discurso e do propósito, porém é de grande importância. Pois é como se Deus quisesse dizer: “Eu conheço a quem reprovarei, e não há necessidade de que alguém, neste caso, se apresente para pleitear comigo. Pois isto consiste em minha soberania”. Quando ponderarmos sobre nossa linguagem comum, de modo algum isto parecerá obscuro. Pois se um homem disser: “Farei o que eu quiser”, ele quer dizer que fará o que acredita ser bom; com isto ele mostra que não se submeterá a ninguém; ele mostra que não está atado nem obrigado a exibir seu conselho e propósito quanto ao que tem de fazer. Assim Deus afirma: “Mostrarei misericórdia para com aquele a quem eu quiser mostrar misericórdia”. Como se quisesse dizer: “Minha misericórdia não depende disto ou daquilo; não se deve buscar a causa em ninguém mais, nem estou jungido a nenhuma lei. Pois sei o que devo fazer; e, entrementes, minha misericórdia se concretizará, e revelarei misericórdia a quem eu quiser mostrar misericórdia”. Equivale dizer: “Não olharei para quem é digno dela. Porquanto não existe sequer um. No entanto, não deixo de ostentar minha misericórdia para com alguns, a saber, para com aqueles que eu tiver escolhido”.

Notemos, pois, como precisamente Deus fala; e isto visa a refrear tudo quanto os homens pretendam, e assim fechar a porta contra toda curiosidade e estabelecer uma barreira contra toda presunção, e que simplesmente o reverenciemos, deixando com ele o que tiver reservado exclusivamente para si; ou, seja, quando ele salva, isso provém de sua mera bondade; e quando ele condena, que não tentemos ladrar contra ele, mas que fechemos nossa boca, a menos que queiramos glorificá-lo.

Ora, assinalemos bem que isto foi expresso por Moisés quando o povo já havia se multiplicado e depois de Deus os haver retirado do Egito. Aqui está uma Igreja que procedera da raça de Jacó. Pois desta mesma casa estéril, e como que desolada, Deus extraiu dela tão grande multidão, que isto mais parecia um notório milagre, e averiguou-se esta promessa: “A semente de Abraão será como as estrelas do céu”. Não seria esta uma atraente exibição no tocante aos homens? Deus, aqui, diz desta multidão: “Reterei a quantos eu quiser; mostrarei misericórdia a quem quiser mostrar misericórdia, e que ninguém me pergunte a razão de eu agir assim”. É deveras verdade que Deus tem uma razão, porém não se segue que possamos compreendê-la, ou que devamos avançar para além de nossos limites e penetrar seus segredos. Devemos, pois, saber que, no que nos diz respeito, não existe razão, mas o conselho de Deus deve ser-nos, em todos os aspectos, a regra da justiça, da sabedoria e da equidade.

Notemos, pois, como a exposição de Paulo concorda muito bem com aquilo que aqui se pronuncia, a saber, que havia dois povos no ventre de Rebeca, e que de suas entranhas duas nações se dividiriam; e isto era justamente como se Deus testificasse que haveria tal divórcio, que, no entanto, a estirpe de Jacó permaneceria abençoada. Não propriamente sem qualquer exceção, mas aqueles a quem aprouvesse Deus conservar para si, como os escolhera antes da criação do mundo.

Vejamos, pois, a suma do que está contido aqui. Mas, antes de avançarmos mais, notemos bem aquilo que já foi dito; ou, seja, que o principal fato que temos de observar é isto: que Deus quer que seja atribuído a si todo o louvor de nossa salvação. Pois, qual é a raiz e ponto de partida da Igreja? É sua eleição. Vejamos para quê Moisés nos chama, em conformidade com a interpretação de Paulo; e também o contexto aqui contido é mui claro. Pois aqui (como eu já disse) não há qualquer indagação sobre uma herança terrena ou transitória; é pela vida eterna que Abraão esperava, a qual ele havia recebido através da promessa. Ora, vemos aqui um Jacó herdeiro. E por quê? Porque ele foi recebido no favor divino, ou porque ele adquirira o favor por algo que apresentara? Por certo que não foi assim. Vejamos então o texto de Moisés sem qualquer glosa, o qual mostra sobejamente bem que a Igreja tem sua origem na mera graça de Deus, de modo que todo o louvor de nossa salvação lhe seja plenamente reservada. Ora, quanto a tudo isto, os que subvertem e obscurecem esta doutrina dizem que, embora Deus não visse nenhum mérito em Jacó, contudo previu suficientemente bem que ele o teria. Eis a razão por que dizem que ele foi escolhido e Esaú, rejeitado. Em suma, visto que uma grande sorte desses cães não ousa pública e categoricamente negar a eleição divina, contudo buscam para ela uma causa superior, a saber, sua presciência. E que presciência é essa? Significa que Deus prevê como todos seriam. Ele escolhe (dizem) aqueles a quem ele previu que seriam de boa natureza e sentimento. E não admira que ele os aceite, e não os outros. Pois ele conhece os bons que ainda não nasceram, mas que nascerão. Mas, quem raciocina assim não possui um pingo do temor de Deus. Pois manifestamente blasfemam contra o Espírito Santo que falou pelos lábios de Paulo, e motejam daquilo que Paulo falou como se fosse mera fábula. Pois se alguém aceita tal solução, então Paulo falou como um homem ignorante e inadvertido. Pois, ao raciocinar assim, ele não via bem nem mal, quer em Isaque, quer em Esaú, quer em Jacó. Não obstante, Deus escolheu um e rejeitou o outro. Mas, na opinião desses fanáticos, a resposta será fácil. E qual é? É verdade que não havia nem bem nem mal; mas haveria ou bem ou mal, e Deus assim o previu. Paulo, porém, pressupõe que isto é um fato, a saber, que todos somos condenados, e que, antes que Deus nos escolhesse, necessariamente permaneceríamos como serpentes cheias de peçonha, e que não havia em nós nada senão motivo para a ira e a vingança de Deus, e que somos totalmente confusos e saturados de peçonha e iniquidade.

Este é o caso de Jacó, como também de Esaú. Pois o que acharemos na raça de Adão, senão total corrupção? Somos, pois, infectados diante de Deus. E tal como a raiz é maldita e viciosa, e totalmente putrefata, necessariamente os frutos devem ser da mesma natureza.

Assim, pois, quando Deus nos abandonar assim como somos, necessariamente todos perecemos, e não fica um sequer, senão que todos permanecemos perdidos e consumidos. Em suma, esta doutrina é bastante comum na Santa Escritura: que todos nós somos filhos da ira. Segue-se, pois, que não havia nenhuma diferença entre Esaú e Jacó, e que Deus distinguiu um do outro, não porque achasse ou previsse algum bem num, ou noutro. Pois, o que porventura ele preveria, senão esta massa corrompida de Adão, a qual não produz nenhum fruto, a não ser maldição? Vejamos, pois, o que ele previu, tanto num como no outro, indiferentemente. Segue-se, pois, que ele pôs em Jacó aquilo que é achado nele, e que ele deixou Esaú ser justamente o que veio a ser depois de seu nascimento. Vejamos ainda por que lemos noutro lugar: “Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele” [Ef 1.4].

Ele não diz que Deus nos escolheu porque previsse que seríamos santos; mas, ao contrário, ele deriva toda nossa santidade e justiça, e todo o bem que porventura for achado em nós, sim, ele deriva tudo isso desta raiz, a saber, da eleição divina, a fim de andarmos em seu temor, para que tenhamos em nós alguma integridade, para que tenhamos algum zelo e afeto em fazer o bem. Se isto é assim, então se segue que Deus nada previu em nós. Porque, se eliminarmos a eleição, o que restará? Como já declaramos, permaneceremos totalmente perdidos e amaldiçoados. E não sem causa, pois Deus nada viu em nós senão corrupção, e necessariamente ele nos rejeitaria, e nos renunciaria, como lemos, arrependido de haver feito o homem. Portanto, aqui está o que podemos apresentar de nossa parte.

Portanto, não passa de tolice por demais frívola dizer que Deus escolheu os seus em conformidade com sua previsão do que aconteceria no futuro; pois seria necessário que ele pusesse neles aquilo que é bom, e o poria ali porque os escolhera. Observemos, pois, o primeiro passo donde devemos começar; equivale dizer que em nada diferimos uns dos outros, a não ser nisto: que Deus nos discerniu. Observemos ainda por qual motivo Paulo abole toda a glória que porventura os homens usurpem. “Quem é aquele [diz ele] que te discerne? Aquele que nada tem senão esta palavra de que abaterá e anulará todo orgulho. E por quê? Pois tu tens algo [diz ele] que porventura te pertence?” Dessa maneira ele mostra que os homens não podem escolher seu próprio lugar, para dizer: “Dispor-me-ei a fazer o bem, e Deus terá compaixão de mim, e eu abraçarei sua graça; terei um bom motivo; terei esta preparação”. Ora, Paulo exclui tudo isto, ao dizer que todos nós estamos perdidos, que um após o outro temos de ser todos abatidos e lançados no abismo do inferno, a não ser que Deus queira distinguir-nos. Então, donde vem toda nossa dignidade e excelência, para que Deus quisesse estender sua mão sobre nós? Por isso, retenhamos este princípio e apliquemos toda esta doutrina que temos citado a este propósito, como Deus pôs diante de nós, em Jacó e Esaú, um espelho para ser mirado. Da mesma forma, estejamos contentes, para que estas duas pessoas sejam para nós como duas imagens vívidas a fim de nos mostrar que o mundo, em si mesmo, tem condição semelhante, mas que uma porção é qualificada, e a outra, não; porque assim foi do agrado de Deus. E, especialmente (como eu já notei), assim era o mais jovem, e

tudo indica que ele estaria sujeito a seu irmão, segundo a ordem da natureza; não obstante, observemos que ele foi posto na posição de primogênito; e Esaú não só foi posto sujeito a ele, mas sumariamente rejeitado. Isso se deu para que ele não tivesse nenhuma parte nem porção na Igreja.

Este fato nos mostra sobejamente bem que Deus sempre nos manteria convictos de que não há nenhum problema de levarmos, de nossa parte, alguma coisa à presença de Deus; de nos atirarmos ali, como se em nós mesmos tivéssemos algum valor e dignidade. Porquanto Deus não contraria a si mesmo; não obstante ele aqui revela certo tipo de repugnância e contrariedade. Ele mesmo foi quem ordenara que o primogênito da casa fosse a cabeça. Ora, foi ele quem estabeleceu esta lei; e, contudo, no momento ele a subverte; todavia (como eu já disse), tudo isso se harmoniza muito bem. Pois Deus está acima de sua lei ordinária, e inclusive pode mudar aquilo que foi implantado por uma regra comum; e ele faz isso para que saibamos que não é (como Paulo também afirma, Rm 9.16) de quem quer, e nem de quem corre, mas simplesmente dele, que ostenta sua misericórdia. Ora, quando Paulo diz que não é de quem quer, nem de quem corre, ele não quer dizer que não nos cabe, de nossa parte, ter alguma boa vontade, como declarou em outro lugar [Fp 2.13]: “Porque é Deus quem opera”. E também não quer dizer que não podemos esforçar-nos, mas simplesmente mostra que os homens não possuem nada, e por isso não podem apresentar nada diante de Deus.

Então, nada existe, senão unicamente sua misericórdia. Pois se os homens pudessem confrontar algo com ela, haveria marcos divisórios, e seria possível saber qual é o de Deus e qual o dos homens. E então se poderia dizer que nem todos desfrutamos exclusivamente da misericórdia de Deus, mas que nesse particular existe nossa boa vontade, nossa boa corrida e nosso bom zelo. Os homens podem falar assim. Aqui, porém, a intenção de Paulo é frustrar tudo quanto os homens porventura tenham em si mesmos, e que neste aspecto nada exerce domínio, senão unicamente a misericórdia de Deus. É bem verdade que muitas pessoas se esforçam, sim, e citam o exemplo dos judeus que inflam como sapos, com uma espécie de orgulho diabólico, crendo que Deus estava obrigado em relação a eles, e que devem ser considerados justos em relação às suas obras. Mas, neste aspecto, eles se enganam, e nada farão senão retroceder, pensando estar indo para frente. Quando os homens presumem demais a seu respeito, indubitavelmente estão a usurpar de Deus sua honra. Vemos então essas pessoas sacrílegas, e outras piores que estas; e, ademais, até que Deus nos renove, seja o que for que de encantador exibamos, o fato é que em nós nada existe além de odor nauseante, e não passamos de seres nocivos aos olhos de Deus.

Assim, pois, não pretendamos que podemos querer ou correr; mas cabe a Deus encontrar-nos totalmente perdidos, e nos recuperar desse abismo sem fundo, e separar-nos daqueles em cuja companhia estávamos perdidos, e com quem nos assemelhávamos. Pois (como eu já disse) a condição do gênero humano é uma só. É verdade que uma sorte pertence aos filhos da ira, e a outra aos abençoados de Deus. Mas donde provém esta separação e este divórcio? Da misericórdia. E não devemos inquirir além disso, mas devemos contentar-nos somente com esta palavra, em vez de alguma outra razão.

Notemos, pois, por qual razão o primogênito foi expulso de seu posto e, nesse meio tempo, Jacó, que era o inferior, foi estabelecido em seu lugar, sim, e permanece como o único herdeiro. Quando o profeta Malaquias [Ml 1.2] fala disto, ele censura os judeus por sua ingratidão. É verdade que este era um sinal externo, a saber, que Deus escolhera a Jacó, em vez de Esaú, posto que ele dera a terra de Canaã por sua herança, e que Esaú foi enviado para o seio de montanhas remotas. Mas esta não é a sentença sobre a qual o profeta insiste; ele visualiza uma coisa muito mais elevada.

Paulo também, quando lança mão deste testemunho do profeta, visto que Deus tomara para si a estirpe de Jacó, ele atribui tudo isto à sua mera misericórdia. Assim diz o profeta: “Não foi Esaú irmão de Jacó?”. Como se quisesse dizer: “Vós estais saturados de orgulho e obstinação; sim, vos explodis neste ponto e não vos custa nada dizer: Oh! somos da santa e gloriosa estirpe de Abraão; somos a Igreja; somos o povo ao qual Deus abençoou e santificou!”. “E em que nos tens amado? — diz ele. Não foi Esaú irmão de Jacó?” Vede os idumeus, vossos irmãos; porventura são eles o povo de Deus? Vós dizeis que eles são estranhos à Igreja; e, embora portem a circuncisão, não obstante Deus os eliminou. “E quando chegastes a esta conclusão?” — diz ele. “Quem os separou assim? Se recuardes no tempo, de fato descobrireis que sois os filhos de Jacó. E Esaú, pergunto eu, de quem é filho? Porventura não é ele descendente de Abraão e Isaque, tanto quanto vós?”

Aqui, porém, ele fala não só da terra de Canaã, mas avança mais e diz: “Amei a Jacó, porém odiei a Esaú”. E esse amor que ele nutre por Jacó, donde procedeu? É verdade que Jacó, considerado em si mesmo, não poderia ser aceito (como eu já disse). Pois o visualizamos como filho da ira, e nada traz do ventre de sua mãe senão esta horrível maldição que foi lançada sobre todo o gênero humano. Não obstante, Deus o amou. Ora, Deus não ama a iniquidade, e bem sabemos que ele odeia o pecado. Como, pois, ele amou a Jacó? Isto se deveu ao fato de ele o haver tirado daquela perdição em que jazia. E por que ele odiou a Esaú? Ora, é bem verdade que há uma causa justa pela qual Deus odiaria todo o gênero humano. Pois, como já dissemos, nada existe em nós senão vício e iniquidade; no entanto, quando avançamos mais, chegamos a esta conclusão: por que Deus, antes de haver criado o mundo, e antes da queda de Adão, sim, por que ocorreria se ele odiasse ou amasse?

Aqui devemos manter-nos mudos e calmos. Aqui não devemos erguer nossas cabeças com altivez. Pois o que ganharemos em deflagrar uma controvérsia e questionamento contra Deus? Sem dúvida estaríamos lançando pedras sobre nossas próprias cabeças, as quais não cairão aqui nem ali, tampouco atingirão a majestade de Deus, mas se voltarão sobre nossas próprias cacholas, e sucederia que, com elas, seríamos esmagados e varridos.

O que ganharemos, pois, quando abrimos nossa garganta para vomitar blasfêmias contra Deus? Pois estaremos simplesmente arremessando dardos e pedras para o ar, porém não o atingirão; e, sucederá, antes, que seremos ou traspassados, ou feridos, por eles, e ainda permaneceremos confusos por nossa própria temeridade e arrogância. Daí, contentemo-nos com aquilo que Deus pronunciou, a saber, que ele odiou a Esaú e amou a Jacó. Ora, é por isso que os filhos de Jacó tinham de viver tão convictos de que nada tinham de que se gloriar e de que em nada podiam repousar senão no reconhecimento de que Deus usou para com eles de liberal e infinita bondade, e para isso ninguém poderia achar qualquer razão, a não ser no fato de que assim lhe aprouve. Não obstante, estavam saturados de impiedade contra Deus, e queriam manter este privilégio. Deus, porém, lhes mostra que tal coisa não lhes pertence, e que, se o consideravam seu Pai, então que fossem realmente seus filhos.

Mas, pelo presente, somos admoestados que, embora nossa salvação proceda unicamente da graça de Deus, e que nela está segura até ao fim. Não obstante, não se segue que, a cuja sombra, podemos soltar nossas rédeas para o mal e entregar-nos a ele. Mas há canalhas e cães que ladram contra Deus, e há também porcos que subvertem esta doutrina da eleição por meio de sua vida devassa e indecente. Pois há duas sortes de pessoas que são inimigas desta doutrina: uma age como cães, e a outra, como porcos. Uma delas, que de outra coisa se compõe, senão daqueles que ladram e arreganham seus dentes, e que desprezam a Deus por seus perversos questionamentos, como vemos nestes dias naqueles canalhas que não nutrem qualquer escrúpulo em rasgar em pedaços toda a Santa Escritura a fim de a corromper, perverter, falsificar e adulterar, de modo que obscurecem a eleição divina, ou, seja, a convertem em nada. E observemos que isto tende a tornar odiosa esta doutrina. Pois dirão que aqueles que assim falam já não fazem nenhuma diferença entre o bem e o mal, e que por esse meio Deus se tornaria injusto, se impusesse alguma diferença entre um e outro, e que nele haveria acepção de pessoas.

Esses, pois, são cães que ladram e arreganham os dentes contra esta doutrina. Ora, há também os porcos que não a desprezarão totalmente, porém dirão: Muito bem, se eu sou eleito, então posso fazer tanto mal quanto quiser. Pois Deus bem sabe como me guardar, e por isso jamais posso perecer. E, ao contrário, se fosse réprobo, por que me atormentaria tanto em fazer o bem, já que eu jamais perecerei? Estes, pois (como eu já disse), não chegam a vomitar suas contradições a ponto de subverter a verdade de Deus, porém se chafurdam aí e permanecem em seus pecados como bestas brutas. Mas devemos atentar bem tanto para aqueles quanto para estes. E foi por esta causa (como eu já disse) que o profeta Malaquias mostra ao povo que tudo o que Deus lhes fizera proveio da mera e graciosa liberalidade de Deus, e os exorta à santidade de vida. Portanto, no tocante ao que nos é dito, que Deus é o autor de nossa salvação, e que nada podemos apresentar que porventura sirva nesta questão, e que ainda devemos manter-nos sempre em guarda, e que ele aperfeiçoaria e terminaria aquilo que começara, não façamos isto com o fim de soltar os freios de nossos vícios, mas, antes, mantenhamo-nos em seu temor.

E, de fato, quando Paulo diz que “o firme fundamento de Deus permanece, tendo este selo: O Senhor conhece os que lhe pertencem”, acrescenta: “Aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome do Senhor” [2Tm 2.19].

Notemos bem, pois, que Deus não nos daria nenhuma ocasião de fazer o mal, quando nos escolheu sem qualquer consideração por nossos méritos, e que ele ainda nos mantém por sua mera bondade; mas a finalidade disto é para que o honremos e andemos de maneira ainda mais cuidadosa. E, portanto, volvamo-nos para aquilo que tocamos de leve, a saber, que ele nos escolheu para que sejamos santos e sem mácula diante de sua face. Se bem é verdade que ele não nos escolheu porque nos visse já assim, mas quando nos escolheu teve em vista que fôssemos assim. Convém, pois, que olhemos mais longe, e que este seja o alvo que almejemos todos os dias de nossa vida.

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