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Sermão em Gênesis 25.12-22 – João Calvino

Neste ponto devemos considerar a diferença que Moisés estabelece entre os filhos de Abraão.

Já vimos que toda a prole que ele obtivera de Quetura passou a habitar um país remoto. Concernente a Ismael, ele se estabelece em separado, bem longe da terra de Canaã. Notavelmente, ele prossegue sendo um proscrito. Pois era necessário que a herança, que fora destinada a Isaque, permanecesse sendo deste. Ora, em primeiro lugar, lemos que Ismael teve doze filhos, os quais de tal sorte se multiplicaram que deles procederam doze povos. Nisto vemos que não foi sem razão que Deus dissera a seu servo Abraão [Gn 17.20–22] que, por sua causa, também Ismael receberia determinada bênção; mas que a mesma seria transitória e fugidia; e a principal [bênção] continuaria pertencendo a Isaque.

Mas, seja o que for, aconteceu que Deus se mostrou fiel e fidedigno à sua promessa, a qual pertencia a esta vida temporal. Se Deus quer que sua verdade e constância sejam conhecidas nessas coisas do mundo, as quais se desvanecem, e nada mais temos senão uma figura que se desfaz, no dizer de Paulo, o que será quando as promessas que são da máxima importância nos intimarem a tomar posse da herança do reino do céu? Porventura cremos que podemos ser privados dela, quando permanecemos nele? Vemos, pois, como devemos tirar proveito dessa história. Se Deus quiser ser conhecido como aquele que é firme e fiel à sua palavra em favor dos que são tidos como estranhos, os quais ele tem deixado fora e rejeitados de sua igreja, o que ele fará, pois, a nós, que somos seus filhos, a quem adotou e a quem se agrada em ter perto dele? Pois se Deus, nas pequenas coisas, como no gado e em todas as demais coisas de igual gênero, quer que sua verdade seja conhecida, o que será quando, na pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, ele nos designa a herança do céu e declara que usará de misericórdia para conosco e que perdoará nossos erros, para que sejamos reconciliados com ele, e para que, por esse meio, sejamos irmãos e companheiros dos anjos, sob uma mesma Cabeça, o cérebro mentor, nosso Senhor Jesus Cristo? Porventura poderia Deus falhar em suas promessas? Poderiam elas ser anuladas e ficar sem efeito e sem concretização? É impossível que isso aconteça.

Portanto, é precisamente isso que temos de manter em primeiro lugar. E, a seguir, temos algo mais a observar: que Deus se manifestará em nosso favor não só nesses seus benefícios, os quais são grandes e excelentes, mas também naqueles que dizem respeito a esta vida — e que nada há tão pequeno em que ele não terá imprimido algumas marcas de sua paternal benevolência. E, visto que ele dissera que cuidaria de nos suprir, então que esperemos nele, em tudo aquilo que pertence à manutenção desta vida, e não imaginemos que detraia sequer uma mínima partícula de sua majestade, só porque ele quer que o invoquemos pela bebida que bebemos e pela comida que comemos. Pois ele quer que em tudo, e através de tudo, recorramos a ele; por isso, não nutramos dúvidas de que Deus (se bem que nossos corpos são terra e cinzas, alimento da putrefação e dos vermes; e, segundo linguagem popular, não passam de carniças [carne morta e putrefata] que de nada valem), não obstante fará provisão por todas as nossas necessidades corporais. Isto é o que temos de adicionar como o segundo ponto.

No entanto, temos de ver aqui a comparação que Moisés traça entre Ismael e Isaque. Eis que Ismael é eliminado, e já não é reputado entre os filhos de Deus, e, contudo, vemos que ele prosperou e passou a possuir um grande séquito. Porque, dos doze filhos que ele gerou, doze povos procederam deles. E o que dizer de Isaque? Este casou já com quarenta anos, e sua esposa era estéril, não por um ano, nem por dois, mas pelo espaço de vinte anos, sem ter sequer um filho. Deus lhe dissera: “Multiplicarei a tua descendência, como as estrelas do céu, e como a areia do mar”. Isto foi pronunciado a seu pai Abraão, mas tinha um sentido especial para ele próprio. No entanto, ele poderia ter-se multiplicado antes desse tempo, segundo esperava, não obstante notou que sua esposa era estéril, e era como se Deus brincasse com ele, e lhe declarasse que aquilo que ele esperava de nada valia. Quando, pois, ele viu que seu irmão Ismael, que não tinha lugar na Igreja, que era estranho a toda a esperança de salvação; quando notou que ele (repito) florescia em sua descendência e era como se Deus derramasse sobre ele todas as suas graças, e, entrementes, deixava sua própria casa totalmente solitária, e que ninguém o sucedia, sem dúvida isso o deixou em profunda perplexidade, como se lhe fosse muitíssimo preferível ser como seu irmão Ismael. É como se isso ocorresse para fazê-lo desistir de vez, e depois viver sem esperança e a desdenhar de Deus; ele teria chegado ao extremo máximo, se não fosse sustentado por uma paciência singular.

Pois bem, aqui devemos visualizar, como num espelho, a condição da Igreja de Deus, como começa e como Deus a sustenta e a multiplica, a saber, de uma forma tão estranha que, em todas as evidências, essa mesma aparência que Deus nos teria dado, nada mais é (como se diria) senão com o intuito de nos enganar. Porque (em vez disso, os filhos deste mundo têm aparência atraente, e um homem os vê aumentarem a olhos vistos), uma vez que a igreja subsiste oculta debaixo do solo, uma pessoa vê a terra repovoada cada vez mais de incrédulos, de desprezadores de Deus e de pessoas profanas; e onde alguém achará um fiel? Eles serão mui raros, e ninguém será capaz de percebê-los; serão desprezados; por pouco os homens os calcarão sob a planta de seus pés, e concluirão que Deus não exerce nenhum cuidado para com sua Igreja; e que, além de tudo, ele chega a sentir prazer em que os ímpios triunfem e façam suas exibições de bravuras e pompas.

Ora, isto nos é mostrado nas pessoas de Isaque e Ismael, para que a singularidade desse fato não nos atribule além da medida, e que lutemos constantemente contra todas as dúvidas que costumam despontar em nossa imaginação, na medida em que virmos um pequeno número de pessoas que adoram a Deus, e virmos também um número quase infinito dos que obstinadamente se põem a ele, e que não sabem o que significa assumir seu jugo.

Logo, esta doutrina nos é mui necessária nesta presente época. Pois, como Deus opera em nosso tempo? Porque, quando ele se propôs a erigir seu evangelho, por onde começou? Quais as pessoas que ele chamou? E, mesmo agora, se alongarmos nossa vista pelo mundo inteiro, descobriremos, em primeiro lugar, que na Ásia (que é a maior parte do mundo) tudo é desordenado e confuso, e que ali nada há além de superstições, de um lado, e tão irrefreável barbarismo, do outro, que causa compaixão o só contemplar. Observemos ainda a outra parte do mundo, ou, seja, a África, a qual se encontra na mesma situação. E no que diz respeito à Europa (que os homens chamam cristandade), que alguém atente bem para o que é a Itália, a França e outros lugares; e quem observar perceberá que o Diabo mantém ali seu domínio, e que os fomentadores do Anticristo, que são mortais inimigos da [genuína] Igreja, não importa que crença eles professem, então os verá como as estrelas do céu e como a areia do oceano; a ponto de alguém poder dizer que nada existe senão para o uso deles. E deveras são mui habilidosos em gabar-se disso; pois fazem deste fato um escudo para desdenharem de Deus, bem como para continuarem empedernidos em sua rebelião. Motejam e se riem de nós por isto: que somos umas poucas pessoas, ainda quando nós é que somos os sustentáculos da Igreja. De nossa parte, porém, somos desprezados e rejeitados; e, no entanto, estamos longe de nos aproximar desse grande povo que avança contra nós.

Em suma, alguém diria que somos como três grãos de trigo debaixo de um monte de palha. E, no entanto, porque tudo isso é assim, temos este testemunho de Deus: que ele nos guarda e

nos admite como servos de sua casa. Porquanto, ela não é Igreja, a menos que esteja unida a nosso Senhor Jesus Cristo, que é sua Cabeça. Quando isto cai por terra, todo o resto naufraga e vira ruína, no dizer de Paulo: “Agora estamos unidos ao Filho de Deus pela fé em seu evangelho”, que é o vínculo seguro e indissolúvel. E, como julgaremos que somos a Igreja, visto que nada somos em comparação aos infiéis, que se ensoberbecem em razão de sua grandeza e de todas as suas demais qualidades, das quais se acham tão imbuídos, a ponto de mencioná-las com boca cheia? Nós, porém, espantemo-nos ante tudo isso, uma vez que Deus nos deu uma aliança na pessoa de nosso pai Isaque, quando a Igreja era como que uma casa abandonada, e que ele não tinha um descendente e nem se constituía num grande número de pessoas; e, no entanto, nem por isso deixou de sustentá-la como um tesouro oculto; que isso nos baste.

E agora, pelo que segue, é preciso que atentemos igualmente para a pessoa de Ismael; porquanto ele saiu da casa de Abraão, que naquele tempo era a única Igreja no mundo inteiro. Ele também foi circuncidado, como se fosse um herdeiro do reino de Deus; sim, ele era o primogênito, e tinha carta branca na casa, porquanto zombou de seu irmão, como já vimos. Ora, isto é justamente assim em nossos dias no tocante aos papistas; pois eles não são estranhos na igreja, contudo são como que filhos bastardos. Dirão ainda que possuem a antiguidade de seu lado, e existiam antes de nós; e percebemos o quanto confiam em sua sucessão que herdaram dos apóstolos (segundo creem): que em todos os tempos tem havido bispos e prelados em sua igreja, e que por isso pode-se com certeza concluir que o título igreja lhes pertence. E, não obstante tudo isso, não passam de bastardos como o foi Ismael, já que não foram gerados pelo evangelho como temos ouvido, o qual é a semente da liberdade, porém se corromperam. Eis por que podemos considerá-los ismaelitas. Pois, a despeito de constituírem um grande povo, e que nós, entrementes, permanecemos como pobres frutos extemporâneos, contudo saibamos que nosso Senhor Jesus Cristo nos deu tal exemplo disso, que hoje não temos razão para nos envergonharmos. Isto, pois, em suma, é o que temos de recordar aqui.

E assim devemos também aplicar aquilo que lemos nos profetas. Pois isto aconteceu não apenas uma vez: que a Igreja vivia reduzida a um pequeno número, sim, e que ela nada tinha senão horrível desolação; como no tempo do cativeiro babilônico, o que era ela? Pois lemos no livro de Isaías:

Canta alegremente, ó estéril, que não deste à luz; exulta com alegre canto e exclama, tu que não tiveste dores de parto; porque mais são os filhos da mulher solitária do que os filhos da casada, diz o Senhor. Alarga o espaço de tua tenda; estenda-se o toldo de tua habitação, e não o impeças; alonga tuas cordas e firma bem tuas estacas [Is 54.1,2].

Quando, pois, ouvimos que isto se refere à Igreja, saibamos que, se Deus, hoje, nos humilhar ou punir nossas ofensas, diminuindo o número dos que o invocam, nem por isso nos queixemos, antes sigamos sempre nossa vocação sem qualquer perplexidade. E, mais, notemos bem (especialmente o estado da igreja) aquilo que está expresso no Salmo 113 [v. 9]: que Deus enche as casas, dos que antes eram estéreis, com filhos formosos e numerosa descendência. Esperemos, pois, até que o Senhor faça sua obra, e então teremos ocasião de o glorificar, sabendo que não foi sem propósito o que ele disse: que a semente de Abraão seria multiplicada; mas que isto seria de tal natureza, que nos seria incompreensível, e que os começos são pequenos e, por assim dizer, nada. Quando, pois, tivermos esta paciência, é certo que Deus operará de tal modo que teremos sempre de, por esse meio, ser confirmados em suas promessas, visto que o efeito se revelará, sim, e mais do que poderíamos pensar ou desejar. Além do mais, isto é o que temos de observar neste lugar.

Há, porém, outra dificuldade, a saber, que, embora Ismael tivesse progredido tanto, que contempla tantos sucessores, a ponto de maravilhar-se (pois viveu cento e trinta e sete anos e teve doze filhos), e pôde ver um povo oriundo de sua descendência. Embora por certo tempo se visse tão exaltado, contudo logo depois ele veio a ser um proscrito. Pois de fato Moisés relembra aqueles filhos que ele teve, no entanto, segundo consta na sacra história, são rejeitados e não têm comunhão com aquela genuína estirpe de Abraão que foi abençoada; mesmo assim, notemos que de nada vale ter autoridade e ter grande ostentação e desfrutar de fama entre os homens e ser destituído de reputação, ou seja, com tantas pessoas nos admirando, e, contudo, sermos de nenhum préstimo, em comparação com o durável estado da

Igreja.

Deus estabelece sua casa com um contingente que mais parece brinquedo de criancinhas; não obstante, os fundamentos são perenes. E, mais, ele impulsiona sua graça de tal modo que é possível a qualquer pessoa perceber que ele é o fundador de sua Igreja, que a edifica, respalda e sustenta. Isto transparece claramente; contudo, os incrédulos têm seus discursos e determinações; de tal sorte que são como a relva que cresce nos telhados, exatamente como lemos no Salmo [129.6]. O grão é debulhado e os homens o lançam na terra, e ali permanece embaixo do solo; nesse ínterim, eis que a relva nasce num lugar alto, nos cumes das casas; uma vez que se acha mais perto do sol, e não lança nenhuma raiz, e assim inevitavelmente murcha, assim nenhum fruto provém dela, segundo o profeta nos mostra ali. Mesmo assim, quando vemos que o Senhor nos mantém nesta pobre e humilde condição, e que não só somos desprezados, mas, por assim dizer, totalmente rejeitados por todos, saibamos que nos deve ser suficiente termos em nosso Deus um teto para vivermos eternamente por sua graça; que somos sustentados por ele; e que somos como que árvores plantadas às margens de um ribeiro, que serão perenemente regadas com a água que dali lhes extrai nutrientes. Contentemo-nos, pois, com isso. De modo que essa comparação não é feita sem motivo, quando Moisés expressamente diz que Ismael gerou doze filhos, os quais se reuniram em doze povos; e depois disso ele fica ali e então os abandona.

Em seguida, ele diz: “Estas são as gerações de Isaque”. E por quê? Porque sua esposa permaneceu estéril até atingir a idade de sessenta anos. Eis aqui algo maravilhoso, sim, porém descobrimos que, depois que Deus ratificou sua promessa, a saber, que ele seria multiplicado em grande medida, como lhe fora mostrado, e veria que Deus não falava em vão. Pois o que seria ver tal multidão de pessoas no Egito, como se fosse relva a crescer no meio de um forno em brasa? Pois isto se assemelhava a uma fornalha (como a Escritura o expressa), a saber, a tirania e escravidão egípcias. É possível ver as pessoas como palha, e o fogo que é aceso por toda parte, ao seu redor; e, contudo, todas essas pessoas não são consumidas, como a figura que é mostrada na sarça, que era, por assim dizer, uma chama ardente, e, no entanto, a sarça permanecia integral e não se consumia [Ex 3.2–4; At 7.30]. Vemos ainda como o povo se multiplicava, vivendo sob tal pressão e angústia, que então era não só uma questão de cem mil, ou de trezentos, ou quatrocentos mil, mas de seiscentos mil saindo daquele cativeiro. E, como isso foi possível? Eis um milagre de causar espanto!

Ora, pois, saibamos que, como Deus desta maneira testava a fé e a paciência de Isaque, assim no fim ele achou um meio de concretizar sua promessa, deveras além do alcance humano. Pois isto aconteceu de uma forma estranha, e que ninguém consegue imaginar. Em nossos dias, apliquemos isto também a nós, e pratiquemos aquilo que está expresso no Salmo 37 [v. 10]. Se virmos os perversos e desprezadores de Deus progredindo como os cedros do Líbano, esperemos; pois nem ainda desviamos nossos olhos, e ei-los já arrasados e eliminados, e já nem se vê o lugar onde estavam. E por que é assim? Porque não foram plantados por e em Deus. Ouçamos aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo diz: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou, será arrancada” [Mt 15.13].

Por isso, não invejemos os filhos deste mundo quando os virmos em posição elevada, quando os virmos progredindo com tanta nobreza e dignidade; e se o mundo zomba de nós, não nos dando a menor importância, e desdenhe de nós, não obstante que nos seja suficiente sermos estimados aos olhos de Deus e de seus anjos. E, no ínterim, aguardemos até que Deus concretize o que falou em outro lugar: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro no Líbano. Plantados na Casa do Senhor, florescerão nos átrios de nosso Deus” [Sl

92.12,13].

Ao lermos que serão plantados na casa do Senhor, significa que serão abençoados por ele. Pois nisto também consiste nossa felicidade contínua; à medida que o tempo passa, podemos permanecer sempre firmes, como lemos no Salmo 112. Que, uma vez que Deus permanece para sempre o mesmo e não muda como muda o mundo que envelhece e cresce em corrupção, Deus, porém, é sempre o mesmo. Por isso o profeta conclui que a morada dos fiéis será perene; e que embora à primeira vista alguém não perceba a graça de Deus exibida nele próprio, contudo no fim ela será conhecida.

Portanto, até aqui, isto é o que temos que aprender deste texto, e desta diferença que Moisés traça aqui entre a progênie de Ismael e a de Isaque. Observem-se estes primórdios da igreja que é quase que nada, porém seu término é maravilhoso. Ora, os começos dos filhos deste mundo são poderosos e nobres, tanto que chegam a deixar atônitos todos os homens, porém tudo redunda em nada. E por que é assim? Porque não têm permanência na promessa de Deus. Esta é a fonte da vida, e é assim que podemos continuar até o fim; este é também o meio pelo qual seguimos em frente, suplantando o mundo. Mas quando a questão é de nos regozijarmos em Deus e de nos contentarmos com sua bondade paternal, ele nos mostrou isto: que não sejamos tão estúpidos de nos ocuparmos daquilo que agora vemos com nossos olhos. Pois estas coisas atuais do mundo passam e se desvanecem; nós, porém, vemos o invisível, segundo a verdadeira natureza da fé, no dizer do apóstolo.

Então Moisés adiciona: “Ismael habitou fronteiro a seus irmãos”; quer dizer, longe de sua presença. É verdade que se tem traduzido isto por habitar, e a palavra implica cair, porém significa descansar, habitar e possuir uma casa. Este, pois, é o significado genuíno e natural: que Ismael não habitou longe (como já vimos) dos filhos de Quetura, porém permaneceu nas proximidades da terra de Canaã, a qual fora prometida a Isaque; não obstante, isto é também verdadeiro: que ali ele não possuía aquela terra, pois fora dito que ele seria excluído dela. E quem é que o expulsou dali? Pois, após a morte de Abraão, é certo que ele poderia ter permanecido ali, caso o quisesse. Isaque nada possuía senão o sepulcro que seu pai comprara; ele não fora levado para lá a fim de possuir grandes e vastas possessões; ele nada possuía, a não ser que lhe fosse totalmente emprestado e com a permissão dos habitantes.

Ismael, pois, bem que poderia ter feito sua morada e se estabelecido ali caso o quisesse. No entanto, ele se foi dali. Porventura isto significa obediência a Deus? Claro que não. Porquanto ele se encheu de orgulho e rebelião. Portanto, ele teria antes blasfemado de Deus, enquanto pensava: “Eu estou aqui distante, como se não pertencesse à casa de meu pai. Portanto vou permanecer no país onde eu nasci”. Deus, porém, o levou dali sem seu conhecimento, e por isso ele se foi como que por uma inspiração secreta. Veja-se como Deus age em relação aos incrédulos: ele os afasta e os faz perambular de um lado para o outro.

Aparentemente, não percebemos que foi isso que aconteceu; no entanto, pela fé devemos considerar isso como uma providência divina; e se fôssemos bem atentos a esse respeito, é certo que teríamos provas daquilo que aqui está escrito, e isso diariamente. Pois, como é possível não sermos destruídos por essas bestas dementes, que nos cercam de todos os lados? Percebemos a que ponto chega sua crueldade e quão insaciáveis eles são em sua cupidez. Como explicar, pois, o fato de não sermos todos tragados, senão que Deus afasta a fúria deles, e porque ele bem sabe como dirigi-los como bem lhe parecer? Algumas vezes ele os fará empurrar uns aos outros; além disso, ele os guarda ali como leões enjaulados e mantidos entre barras de ferro. Veja-se, pois, como Deus também hoje impele e caça os incrédulos onde ele quer, ao menos sem violência, para que não o percebam, justamente como fez naquele tempo com Ismael. Pois já declaramos que ele então nada mais desejava senão subverter e abolir a promessa de Deus feita a Isaque; e, não obstante tudo isso, ele não o faz. E por que não o faz? Porque do alto não lhe foi permitido, e porque Deus o faz habitar num lugar fora do caminho, dizendo: “Habitarás fronteiro a teus irmãos. Mas, seja como for, tu não lhes serás por obstáculo, pois são eles que desfrutarão da região que lhes designei por herança”. Mas ele fala especialmente de irmãos; e, não obstante tudo isso, ele não tinha nenhum além de Isaque, e isto para mostrar que Deus não se refere a um ou a dois, quando confina Ismael; mas, como se o povo já habitasse a terra de Canaã; um povo, reitero, que ainda não nascera, sim, que não nasceria senão bem mais tarde.

Esta é a suma do que temos ainda que observar aqui. Ora, em seguida podemos ser confirmados e fortalecidos, à medida que visualizamos os perversos, que se deleitam em condenar a Deus (os quais nos são por inimigos mortais), em expelir suas frivolidades, sabendo que nosso Senhor pode impedi-los e retê-los muitíssimo bem, e que os fará retroceder de alguma outra maneira e quando parecer que vão nos expulsar e banir do mundo no qual nosso Senhor os mantém cativos, ainda que não saibam como. Em suma, o que aqui se diz de Ismael, teremos a prova, para que sejamos pacientes e invoquemos a Deus, em nada duvidando, senão que ele tencionava espontaneamente salvar-nos, o que no início nem chegávamos a perceber.

Agora, porém, focalizemos o que Moisés menciona concernente a Isaque. É verdade que disso ele já havia dito algo, mas é indispensável que seja deduzido mais amplamente. Ele dissera: “Isaque era de quarenta anos de idade quando tomou Rebeca por esposa”; e, mais, que ela era estéril. Ora, é como se Ismael se casasse no mesmo instante. Pois já vimos que Agar, sua mãe, lhe havia dado esposa, sem menção de sua idade, e pode-se deduzir com plausibilidade que então ele era bem jovem. Isaque atinge a idade de quarenta anos e já podia estar debilitado antes de contrair matrimônio. Vemos, pois, o quanto ele era retraído.

Ora, notemos que todo esse tempo transcorre sem nada se mencionar, exceto que, com frequência, ele se punha a ponderar, inquirindo sobre esta promessa que lhe fora feita, de que sua descendência seria multiplicada como as estrelas do céu e a areia do mar; e que durante todo esse tempo ele não encontrara esposa, porquanto não ousava tomar uma do país onde vivia. E é como se Deus lhe mostrasse que ele a manteria estéril até o fim. No entanto, quando ele se casou, é como se nesse tempo ao menos Deus o abençoaria e o multiplicaria e aumentaria sua descendência. Mas sua esposa continua estéril, sim, pelo espaço de vinte anos. Se uma tentação desse gênero sobreviesse a algum de nós, sem dúvida que o melhor dentre nós dificilmente resistiria sequer um dia; levianamente ignoraríamos aquilo que é aqui mencionado por Moisés. Por que o faríamos? Porque não somos exercitados por muitos conflitos; sim, e porque nos esquivaríamos, e também porque Deus nos pouparia por razões de fragilidade e rigor. Não obstante, devemos extrair proveito de tais exemplos, quando suceder que nossa fé se veja açambarcada ou provada, e nos virmos totalmente arruinados.

Por quê? Porque no tempo e no espaço não somos tão protegidos quanto nos seria necessário.

Ora, lemos aqui que, pelo espaço de vinte anos, era como se Isaque fosse maldito de Deus, e

que se assemelhava mais a um tronco morto, e que não nutria nenhuma esperança de ter algum filho ao longo desses vinte anos. Pois aqui a questão não é apenas de ter filhos. Quando os homens e mulheres se casam, se sentem felizes em ter filhos; e isto é também um emblema do favor divino. Aqui, porém, havia para Isaque uma razão especial. Pois ele esperava não só pelo povo que dele descenderia, mas também esperava pela salvação do mundo. Vemos, pois, Jesus Cristo, que de certo modo já estava em suas entranhas, no dizer do apóstolo, pois ali ele usa a mesma forma de expressão. Isaque percebeu que ele era estéril, e, no entanto, não possuía nenhuma outra esperança de livramento; ele se considerava uma criatura maldita, e é como se já estivesse à beira da cova, a não ser que lhe surgisse alguma saída; e durante esse tempo em que Deus lhe fizera a promessa, na pessoa de seu pai, é como se zombasse dele e o deixasse ali, onde definharia em suas necessidades; e, sempre que olhasse para sua esposa, assim imaginaria em seu íntimo: “Eis um espelho: nele vejo que Deus nos rejeitou; ele já não faz nenhuma conta de nós; ele nos virou as costas; sua promessa foi cancelada; ela já não tem nenhuma vigência nem eficácia para nós”.

Veja-se (repito) como Isaque teve que suportar diariamente tais assaltos. E devemos ponderar bem sobre todas essas coisas (como eu já disse); mas, visto que não consideramos a que fim o Espírito Santo nos fala de Isaque, e porque não sabemos como aplicar para nossa instrução o que aqui se fala dele, percebemos por que não devemos perder o alento; mas quando só existe um sopro de vento, logo nos vemos prostrados no chão. E por que é assim? Porque acalentamos em nosso íntimo pensamentos dessa sorte. Pensamos: Como é possível que Isaque possuísse tão firme constância, e isso pelo espaço de vinte anos? Ele não se desanimou, ainda quando parecesse que Deus estivesse zombando dele. Isso se deu para que ele fosse paciente, e porque bem sabia que não lhe competia determinar o tempo em que Deus devesse cumprir sua promessa, senão que se lhe submetesse, e que lhe seria honroso saber que suas obras são incompreensíveis, e que somente ele conhece os devidos tempos e estações para a concretização do que pronunciara; em suma, que não nos compete impor-lhe uma lei, mas que nos cabe manter silêncio sem murmurarmos, caso as coisas não nos sucedam segundo nosso apetite e desejo; senão que devemos esperar até que ele concretize suas próprias obras; sim, ainda quando vejamos todas as coisas como se fossem contrárias. Não obstante, faz-se necessário que nossa fé prevaleça contra o mundo inteiro, justamente como João afirma em sua epístola canônica. Ora, visto que tudo isso é nada, e se desvanece diante de nossos olhos; e, quando lemos esta história, ela nos parece um tanto mórbida e não recebemos dela nenhum fruto. Vejamos também por que Deus nos pune por nossa ingratidão, porquanto somos tão melindrosos, que tão logo aí surge não uma tormenta ou algum grande tufão, mas uma pequena lufada, eis que logo em seguida nos vemos estremecidos, e por fim desfalecemos.

Tanto mais, pois, cabe-nos frisar bem aquilo que aqui se afirma, ou, seja, que Isaque seguiu em frente em sua confiança em Deus, ainda quando pelo espaço de vinte anos fosse como se não houvesse nenhum resultado. Ora, que ele perseverou, transparece pelo que Moisés disse: “Isaque orou ao Senhor por sua mulher, porque ela era estéril; e o Senhor lhe ouviu as orações, e Rebeca, sua mulher, concebeu” [25.21].

Ao lermos que ele orou ao Senhor, não devemos imaginar que apenas esperou até o tempo de sua concretização; visto, porém, que sua esposa era estéril, ele tinha em Deus seu recurso, o qual era seu único remédio. E então? Era como se ele perdesse seu tempo, e que lançava suas orações aos ares, e que elas jamais chegariam aos ouvidos de Deus? Pois é possível que alguém pense que sim. Porque, se ele fosse ouvido, porventura Deus então não teria declarado, através da experiência, aquilo que lhe prometera? No entanto, ele não via nada disso. Então, depois de Isaque haver orado durante um ano, e dois anos, e nada, era como se ele falasse a uma rocha, ou a uma parede. Era como se Deus fosse surdo; ou, seja, de modo algum mostrava interesse favorável em receber as súplicas de Isaque. E a situação continuou indefinidamente. Mas quando tal situação chega ao fim de dez ou doze anos, o que um homem diria, senão que era preferível desistir? Pois é uma portentosa tentação, implacável e imensa, que Deus nada faça daquilo que prometera, no final de quinze anos. Mas, ainda que ele prorrogasse o cumprimento da promessa para o final de vinte anos, não obstante Isaque não cessou de orar, porém seguiu sempre em frente, e sua oração era um selo indubitável de sua fé. Pois ele orava, não como costumam fazer os incrédulos, os quais sempre esbravejam contra Deus; ele, porém, seguia a regra que nos é dada por Paulo (embora ainda não fosse escrita). E às nossas orações deve associar-se a ação de graças, apresentando-nos inteiramente a Deus, e serenamente esperando dele pelo resultado, mesmo quando ainda não seja visto. Dessa forma, pois, quando Isaque prosseguiu até lançar todo seu peso no seio de Deus, e toda sua preocupação que o oprimia, e todas as suas dores, tristezas e angústias, pelas quais se achava opresso; quando depositou tudo isso no seio de Deus, esta era uma prova segura de sua fé.

Isto, pois, é o que temos de aprender de seu exemplo, a saber, que não pensemos que Deus nos seja obrigado a fazer de imediato tudo quanto falou; mas, depois de haver uma vez falado, ele não der nenhum sinal de realizar sua obra, e nossa conclusão for que tudo quanto prometera nada mais significa (como se diz) senão palavras e vento, cumpre-nos, pois, que sejamos sustentados com tal paciência (como também o apóstolo nos exorta sobre isso, no décimo capítulo de Hebreus, v. 37), que de dia a dia, de ano a ano, e ao longo de toda nossa vida, e como se nada acontecesse, que nos mantenhamos ali, em serena e estável paz diante de Deus, até o fim, sem estresse, sem fazer qualquer rebuliço, sem questioná-lo, sem citá-lo, como nossos levianos apetites costumam induzir-nos. E, com relação a isso, temos de pôr em prática o que apóstolo cita do profeta Habacuque [Hc 2.3], que, se ele prorroga sua promessa, devemos esperar por ela, e não desistir.

Ele aqui estabelece duas coisas: deveras diz que a promessa de Deus não será prorrogada; ou, seja, que haverá uma execução certa e indubitável, e no tempo certo. Mas, concernente a nós e ao nosso senso ou sentimento, ele diz que ela será prorrogada; de modo que precisamos esperar pacientemente. Eis, pois, como nossa fé deve ser testada. Pois se esperarmos que Deus se mostre fiel para conosco, e que permaneçamos firmes e constantes, nos compete ser mais e mais, e com frequência, exercitados em orações e súplicas; pois a fé não deve ser ociosa e tacanha, se temos de viver aqui embaixo, como pobres infelizes e miseráveis, e que alguns devem ser afligidos com doenças, outros com pobreza, que todos têm de suportar muitas aflições e misérias; que, não obstante, seguimos em frente, e bem sabemos que, quando Deus nos promete ser por nosso Pai, não significa que ele sempre exiba isso com toda evidência diante dos olhos. De fato ele nos dará alguma degustação de sua bondade, na medida da necessidade; deveras, teremos neste respeito que satisfazer-nos para que nossa fé seja sempre jungida a ela; de tal sorte que sintamos que naquilo que ele pronunciou não esteja a iludir-nos. “Abre bem a boca, e ta encherei” [Sl 81.10].

Mas, por mais que seja assim, compete-nos que esperemos sempre com fé por aquilo que ainda não aparece, e que está como que longe de nós, e é como se fosse impossível. Além disso, quando formos assim fundamentados e bem firmados na verdade de Deus, e admitirmos ser afligidos por muitas misérias, contudo tendo o cuidado e zelo de orar e invocar a Deus, pela manhã e à tarde, e tendo dele nosso recurso; pois este é nosso único conforto. Isto, pois, não é algo a ser levianamente ignorado: quando Moisés narra que Isaque orava a Deus pela esterilidade de sua esposa, diz que Deus o ouviu. Pois, de um lado, vemos a perseverança que Isaque exibe em permanecer diante de Deus e em apresentar-lhe seus rogos; do outro, vemos que Deus não era surdo aos seus rogos; mas isto se deu não por ele haver-se exibido no primeiro impacto. Pois alguém diria que Isaque estava perdendo o tempo correndo para Deus pela manhã e à tarde, e que teria sido preferível que ele desistisse de tudo, e que no final de vinte anos Deus surgiria de repente, finalmente demonstrando que os homens são apressados demais, e que se lançam de ponta cabeça em seus anseios. E aqui vemos qual é a causa por que com tanta frequência seu nome é blasfemado, e os homens o acusam de não agir segundo suas fantasias; afirmo que isto procede da impaciência.

Ora, temos de notar ainda que Isaque bem sabia ser um grande benefício divino poder fazer sua decisão. Pois quando Deus pronunciou, “Crescei e multiplicai-vos”, de acordo com o que já vimos, ele faz isso para mostrar que nem os homens, nem os animais, podiam gerar e aumentar, senão por seu poder, para que não pensemos que isto procede de uma aventura. Se, pois, bois, cavalos e asnos não podem procriar, a menos que Deus derrame sua bênção e poder secretos, o que dizer dos homens? Pois somos criaturas muito mais nobres, visto que Deus nos formou à sua própria imagem. De modo que, quando vemos que os homens e os animais, respectivamente, são multiplicados por geração, devemos por isso evocar à memória que tal coisa procede da palavra de Deus, que tem emanado de sua boca: “Crescei e multiplicai-vos” [Gn 1.28], o que ainda hoje se revela.

Mas, temos de prosseguir, vendo que Deus conserva para si esta bênção e liberalidade até o fim, com o intuito de distribuí-las como bem lhe apraz. Pois vemos que todos procriam, não de modo semelhante. Alguns não têm filhos; outros, um ou dois; e, outros, os geram às dúzias. Assim, pois, quando contemplamos tal singularidade, cabe-nos também reconhecer que possuir filhos é um benefício especial de Deus, como também lemos expressamente no Salmo [Sl 127.3] que o fruto do ventre (pois é assim que a Escritura se expressa) é um galardão divino. E por isso devemos, neste interesse, recorrer a ele. E, portanto, aqueles que desejam profundamente ter filhos, que então sigam sempre o exemplo de Isaque. Pois deveras dirão: “Oh, eu quero ter filhos!”. Porém um leve pensamento sobre Deus, não há sequer menção nem notícias. E, já que Deus é defraudado de sua honra, oh!, por que ele retrai sua mão? Ou, melhor, se ele der uma prole, conquanto se componha de pessoas profanas, ele lhes dará filhos que arrancarão seus olhos. Pois seus filhos são como serpentes recém-nascidas, ou espinheiros que picam e espicaçam o âmago do coração. Eis, pois, qual é a causa de tantos não terem sucesso em gerar [filhos]; ou, se os geram, é para seu infortúnio futuro; porquanto não se dirigiram a Deus para a obtenção de tal bênção.

Portanto, observemos bem que, aquilo que aqui se exibe concernente ao nosso pai Isaque, é que ele, vendo sua esposa estéril, se preparou diante de Deus, sabendo muito bem que era dele que havia de demandar o resultado. E, deveras, que homem faria aqui alegação contra esta bênção? Se notarmos aquilo que está escrito em Jó [Jó 14], a saber, que, quando um filho se ingressa no mundo, é uma vívida imagem do incompreensível poder de Deus, o qual não pode ser suficientemente estimado. Pois, não importa de quem se gere uma criança, e em seguida seja concebida, como é que vive no ventre materno? E, mais tarde, como é que nasce?

Se um homem nota bem todas essas coisas, quem será tão bruto que diga que os homens os procriam por sua própria força e indústria? Retenhamos, pois, esta lição: aqueles que são casados e desejam uma prole, que a peçam a Deus; e isso por duas razões: primeira, porque Deus reservou isto em sua própria mão, como acabamos de citar do Salmo. Segunda, que não basta que suas casas se encham de filhos, a menos que Deus os governe sempre. Pois seria muito melhor que não possuíssem nenhum filho, do que possuir uma semente perversa, maldita e envolta em malvadeza. Assim, pois, que os pais aprendam (neste interesse) a seguir o exemplo de Isaque. Mas, notemos ainda diligentemente, que Isaque orou não por uma prole, meramente de conformidade com o apetite natural dos homens; mas elevou seu olhar para bem mais alto, ou, seja, porque cumpria-se que dele procedesse a salvação do mundo, na pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, o que mais adiante se deduzirá mais amplamente.

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