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Sermão em Gênesis 25.21,22 – João Calvino

É algo que atribula em grande medida os espíritos humanos quando contemplam o estado do mundo em meio a tanta confusão, levando a maioria a desprezar a Deus de maneira clara; é como se todos conspirassem, juntamente com o diabo, para se entregarem a todo gênero de maldade. Pois, imagina-se ser algo grandemente contra a razão que Deus criasse os homens para destruí-los. Por que, pois, ele permite que o maior número viva em apostasia? Caso se diga que isso não se deve atribuir a Deus, e sim aos que de sua livre iniciativa se precipitam na perdição, contudo não se amenizam sequer um pouquinho aquelas dificuldades que costumamos conceber. Ora, não poderia Deus remediar tal coisa? Por que, pois, ele não fez isso? Os que alegam uma mera permissão: que Deus pôs um freio no queixo dos homens, e que todos se conduzem em conformidade com seu próprio livre-arbítrio, contudo não conseguem desatar este nó, a saber, por que Deus não criou os homens por outro processo, e por que ele permitiu que fossem tão fracos, sim, e tão inclinados ao mal e à corrupção, já que ele conhecia sua enfermidade, e, portanto, poderia ajudá-los, provendo-lhes algum remédio? Portanto, isto nos envolve em grandes tormentos e dificuldades. Cumpre-nos, porém, que avencemos ainda mais. Pois é certo (como a Escritura declara) que não existe nada que não pereça, salvo aquilo que Deus preserva através de sua mera bondade e graciosa liberalidade. Ora, pois, como sucede que Deus escolhe somente a décima ou a centésima parte dos homens, e abandona todo o resto, bem sabendo que serão tragados pelo inferno e perdição? Por isso ele não lhes estende sua mão para ajudá-los; sim, por que ele os destinou à destruição, segundo a expressão da Escritura? Portanto, observem-se todas as palavras de Salomão. Esta é uma sentença que nos livra de questões tão difíceis; e muitos se deixam emaranhar por elas como que por entre espinhos. E, mais, eles se emaranham tanto, que se sentem totalmente confusos. No entanto, há uma tentação ainda mais grave. Pois, além daquela generalidade do mundo, a mesma coisa é também vista na Igreja, a saber, assim que o evangelho é pregado a todas as pessoas, e então surgem muitos hipócritas, alguns são rebeldes, outros se mostram totalmente estúpidos, de modo que nesta escola seu proveito é bem pequeno, ainda quando Deus note todos, sem exceção, a quem fala.

E, além de tudo isso, é possível encontrar muitos que, pelo desprezo e ingratidão, fecharão contra si mesmos os portões da salvação, e rejeitarão todas as graças de Deus. E, não só isso, mas é possível encontrar muitos inimigos mortais da doutrina, ainda quando sejam da família.

E, de fato, o profeta Isaías, havendo dito que Deus congregaria sua Igreja do seio do mundo inteiro, e que teria mui grande número de pessoas, e que isso seria maravilhoso, em vez de regozijar-se, logo depois acrescenta: “Ah, minhas entranhas!”. Ora, com isso ele mostra que, quando parecer que tudo floresce e prospera, e que Deus está sendo glorificado por grandes e pequenos, respectivamente, e que sua bandeira está sendo ostentada, reunindo o mundo inteiro à sua sombra, para que de comum acordo todos sirvam a Deus, então descobre um mal secreto. Pois o profeta clama não só “ah, mãos! ah, pernas!”; mas também clama “ah, minhas entranhas!” Como se quisesse dizer: este mal está tão radicado na Igreja, que seria como se ela estivesse mesclada com tal diversidade de homens, que agasalharia em seu seio seus próprios inimigos, como já vimos através da figura de Rebeca.

Ora, o que se deve fazer neste particular? Todos veem que, se agasalharmos tais fantasias, não podemos ter nenhuma solução, e o diabo se lançará no meio, com o fim de fazer-nos blasfemar contra Deus; ou, pior, instilar tal amargura em nosso coração, que nos assemelharemos mais a toras de madeira do que a criaturas racionais formadas segundo a imagem de Deus. Já vimos a experiência disso em muitas pessoas que chegam a ser como dementes que se enfurecem contra Deus, porque não conseguem desvencilhar-se das dificuldades e dúvidas. É necessário, pois, buscar um remédio. Se bem que é verdade que não podemos isentar-nos plenamente de todas as paixões, que no primeiro impacto, e, por assim dizer, como uma bolha, não nos sentimos abalados nem atribulados, e nossos pensamentos não divagam, nem concebemos muitas coisas ao léu, e não enfrentamos muitas disputas, quer de um lado, quer do outro; em suma, não somos arremessados, como que por algum tipo de tempestade e furacão, a impelir-nos de um lado para o outro. Não podemos manter nossos espíritos totalmente serenos, nem igualmente orientados, sem que sintam alguma aflição. E isto nos é declarado em Rebeca, quando ela diz: “Se é assim, por que vivo eu?”.

Ela deseja a morte, e ainda assim é a mãe dos fiéis? Ela representa a Igreja. Ora, se estava nela gerar em seu ventre a esperança da salvação do mundo, o que estará em nós? E assim, considerando que temos nossas mentes tão dispostas a conceber tolices e vaidades, e, além do mais, também tão dispostas a desprender-se das articulações, e no fim tão sujeitas a fazer guerra contra Deus, quanto mais dispostas deveriam estar em buscar o remédio. Ora, isso nos é dado aqui em Rebeca. Pois ela não consegue desvencilhar-se de sua tristeza, porém não morde no freio, como fazem muitos que persistem aí, que de modo algum buscam daí contentar-se, nem aquietar-se e firmar-se; porém perambulam por este ou aquele caminho, e sempre adicionam fantasias e mais fantasias, e imergem tão fundo em suas imaginações, que o diabo mais tarde as possuem e as impelem com toda a violência e fúria contra Deus.

Rebeca não age assim. Quando, porém, sentiu que esta era para ela uma intolerável tristeza, se esgueirou em direção a Deus; fez-lhe inquirição; e ele prontamente lhe deu resposta. Em consequência, ela descansou assim que soube que isto era do agrado de Deus. E tão logo percebeu o que ele ordenava, e que um de seus próprios filhos seria eliminado da Igreja, e o outro, preservado, tomando conhecimento disto, cumpria-lhe descansar aí e submeter-se a ele, o que ela faz; já que ela não se propunha a lutar contra Deus. Igualmente, tampouco lemos que algum tempo depois disso ela murmurasse; porém vemos que ela atendeu a Deus, e posteriormente apresentou os filhos, e descansou perenemente naquilo que lhe fora dito, e pôs sua mente e afeto em Jacó. Por que ela agiu assim? Porque sabia que Deus ordenara que ele fosse a semente abençoada, pela qual ela mesma esperava; de modo que ela, neste respeito, se comportou de modo mais humano do que Isaque, seu esposo.

Ora, isso nos mostra que, quando enfrentamos algum problema, devemos buscar diretamente em Deus nosso recurso. Pois nossos espíritos não são bastante aptos para conhecer essas coisas ocultas; sim, vemos que nas coisas mais fáceis do mundo (segundo nos parece) com frequência nos sentimos desvairados e atônitos. E o que será, pois, quando a questão for dos juízos divinos, os quais nos são incompreensíveis, e os quais constituem uma matéria extremamente elevada e profunda, e que o Espírito Santo nos ensina que, em vez de sondá-los curiosamente, devemos, antes, reverenciá-los? Porventura os homens não contarão com sua razão, e daí não basearão sua boa preferência, e não examinarão tudo em conformidade com sua fantasia e opinião [carnal]? É certo que tal presunção não ficará impune e igualmente notada. Pois, por que é que tantos cães, nestes dias, vomitam suas blasfêmias contra esta doutrina da predestinação? É porque não se dignam de inquirir da boca de Deus, senão que preferem proferir sentenças segundo a prescrição de seus cérebros, aliás, como se fossem adequadas e suficientes. Assim, pois, sigamos o exemplo de Rebeca; ou, seja, quando todas estas questões surgirem diante de nossos olhos, e nos virmos atormentados de todos os lados, imaginando: Como é possível que a maior parte do mundo pereça, e o restante seja salvo? Como é possível que um seja eleito e o outro, rejeitado? Como é possível que o maior número caminhe para a destruição, e que haja apenas um punhado de pessoas, as quais Deus reserva para si?

Quando nos virmos assim atordoados, recorramos a Deus; ou, seja, atentemos bem para aquilo que nos é exibido na Santa Escritura; oremos a Deus para que ele abra nossos ouvidos e nossos olhos a fim de podermos entender sua vontade. E, ademais, já temos isto? Cumpre-nos descansar totalmente aí e aí ficarmos quietos. Pois não há razão para mais discussão, uma vez que Deus já pronunciou a sentença. Em suma, isto nos é mostrado diariamente: que não podemos jamais dispor de nós mesmos para receber instrução da Santa Escritura, e buscar toda nossa sabedoria ali, a menos que tenhamos em nós esta modéstia e humildade: não desejar entender ou conhecer algo, senão aquilo que está contido nela. Hoje já não necessitamos de alguma revelação celestial, como a que Rebeca recebeu. É bem verdade que alguns têm conjeturado que lhe foi enviado algum profeta; mas esses eram mui raros no mundo de então. Pois alguém pode perceber facilmente que Melquisedeque já havia morrido; e que já não havia nenhum outro além de Abraão e Isaque.

Então, seria um sonho imaginar que ela frequentasse as escolas dos profetas. O fato é que ela recebeu uma revelação, como aqui nosso texto nos informa. E nossa condição atual não é justamente a mesma, e nem mesmo temos tal necessidade dela. Pois então não havia nem a lei e nem o evangelho. Hoje temos a doutrina em sua plena perfeição. “Não falei em segredo, nem em lugar algum de trevas da terra” [Is 45.19; 48.16]. Essas são palavras do profeta Isaías. E não foi dito em vão que os homens o buscariam; como protesta Moisés:

Vê que proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal. Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e tua descendência [Dt 30.15,19].

E, posteriormente, ainda quando Deus tenha seus segredos (diz ele em outro lugar), não obstante este, que equivale à suma da lei, é para ti e para os teus filhos, para que sejas instruído no caminho da salvação. Mas, além disso, temos ainda o evangelho, no qual nosso Senhor Jesus Cristo resplandeceu em nós em toda a plenitude. Pois ele é aquele Filho da justiça. Visto, pois, que temos testemunhos tão suficientes, demandaríamos que os anjos desçam do céu, e que Deus ainda nos desvende aquilo que nos é oculto? Como eu já disse, contentemo-nos com a Santa Escritura. E quando houver algum motivo para se fazer inquirição a Deus, caso já o tenhamos por nosso Mestre, acheguemo-nos à Santa Escritura e recordemos aquilo que Moisés disse:

Porque este mandamento que hoje te ordeno não é demasiado difícil, nem está longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem está além do mar, para dizeres: Quem passará por nós além do mar que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Pois esta palavra está mui perto de ti, em tua boca e em teu coração, para a cumprires [Dt 30.11–14].

E, visto ser assim, que Moisés deixou este seu protesto, em seu tempo, hoje temos menos motivo para perambularmos para cá e para lá, e para buscarmos toda aventura, perquirindo sobre a vontade de Deus. Pois (como eu já disse), o evangelho contém a doutrina em toda sua perfeição; e este é também o único meio pelo qual podemos ficar plenamente satisfeitos e ter nossas mentes bem ordenadas e sustentadas; ou, seja, que ouçamos Deus falando, e nos mostremos prontos a aprender e a receber aquilo que ele disser. Pois é certo que, como ele respondeu à nossa mãe Rebeca, naquilo que bem sabia ser-lhe conveniente, assim a Escritura, igualmente, não nos enganará neste ponto; pois ela pronuncia clara e categoricamente que Deus nos escolheu em Jesus Cristo antes da criação do mundo, segundo seu beneplácito, o que ele em si mesmo propusera fazer. Aí não há necessidade de nenhuma glosa, porquanto Deus fala desta maneira para que os mais rudes e ignorantes conheçam o que está contido nela. Deus, pois, nos escolheu (diz Paulo), e por esse meio ele mostra que nos distinguiu dentre os que perecem. E notemos bem como sua misericórdia para conosco tem maior glória. Pois o que impediu que não permanecêssemos na mesma perdição que os demais, senão que Deus usou de misericórdia para conosco, sem qualquer merecimento de nossa parte?

Mas, expressando melhor, Paulo diz que Deus nos escolheu em Jesus Cristo. Segue-se, pois, que isto está fora de nossas pessoas. Se a escolha divina estivesse em nós mesmos, Deus teria achado em nós alguma razão que o induzisse a amar-nos, e o inclinasse a chamar-nos à salvação. E então? Fomos escolhidos fora de nós mesmos; ou, seja, Deus não levou em conta o que éramos, ou o que seríamos, mas nossa eleição se fundamenta em Jesus Cristo. E, além do mais, ele faz ainda uma declaração mais ampla; ou, seja, segundo seu bom propósito, o qual ele determinou em si mesmo; e é indubitável que tudo aquilo que é segundo o propósito humano com certeza está incluso; e, uma vez mais, quando ele diz, “em si mesmo”, ele o faz para admoestar-nos que, se conhecêssemos a causa por que ele fez isso, é como se fizéssemos uma anatomia de Deus e entrássemos em seu coração e sondássemos todos os seus segredos. E por acaso podemos fazer isso? Quanta presunção! Assim, pois, quando deixarmos que Deus nos ensine, é indubitável que ele nos responderá satisfatoriamente, como nos é necessário, concernente àquilo que pertence à nossa salvação, a saber, conheceremos aquilo que excede a todo o entendimento humano; ou, seja, que uns são eleitos e os outros, rejeitados; e por que uns não têm doutrina, como os papistas, e outros são infiéis, os quais Deus abandona como pobres cegos, e por que outros são iluminados pelo evangelho? E, além do mais, concernente àqueles a quem o evangelho é pregado, uns o recebem com obediência, e são tocados por ele e vivificados, e perseveram nele até o fim; e os demais permanecem empedernidos, ou, melhor, se deixam saturar de ultraje, e lutam contra Deus; outros são levianos e se entregam a todo gênero de iniquidade, desvencilhando-se do jugo, quando forem introduzidos no bom caminho. E donde procede esta diversidade? Devemos achegar-nos a esta fonte que a Santa Escritura nos mostra, a saber, que a graça não é revelada a todos igualmente. Assim, pois, nossa genuína sabedoria está em que sejamos bons alunos de Deus; e então seremos seus alunos quando buscarmos nada saber senão o que ele sabe ser bom e conveniente para nossa salvação; e quando descansarmos aí, e aprendermos a manter cativos todos os nossos sentidos e quando formos severos contra eles. Então, repito, se falarmos da eleição secreta de Deus, como predestinou àqueles a quem ele quis salvar, e como mantém proscritos os demais, nunca seremos afligidos. Por quê? Porque, tendo buscado a vontade de Deus, concluiremos que devemos guardar-nos para aquilo que ele nos mostra, e para aquilo que a Escritura declara, onde ele nos deu suficiente testemunho daquilo que bem sabe ser-nos bom.

Finalmente, há tantos testemunhos da Escritura que nos certificam desta doutrina, que isto nos deveria bastar: que todos quantos não conseguem descansar ali se deixam envenenar por Satanás, e conceberam o espírito de virulência, de orgulho e rebelião, a ponto de não se submeterem à vontade de Deus; e que, em suma, desprezando toda a doutrina e instrução, e fechando seus olhos contra a plena luz, e mantendo seus ouvidos fechados, a despeito de Deus haver falado a alto e bom som, têm eles ocasião de contentar-se ainda mais. Não é necessário que amontoemos todos os testemunhos, sendo estes suficientes para termos uma suma de tudo, sim, como já mostramos sucintamente ser mui evidente.

Uma vez mais, temos também, a esse respeito, de bendizer a Deus e consolar-nos nele, quando soubermos aplicar corretamente esta doutrina como convém. Pois, em vez disso, estes fanáticos e cérebros moles, que parecem ser tão sutis e dispostos a lutar contra Deus, e contra sua verdade, e buscam contradizê-lo, devemos observar como Deus nos satisfaz e a que fim ele direciona esta doutrina, e a que propósito ele quer que ela nos sirva; a saber, para sabermos que somos eleitos, muito embora nem todos. Pois, em primeiro lugar, quando vemos que não podemos receber o evangelho a menos que isso se dê pelo dom especial de Deus, isto serve para levar-nos ainda mais a engrandecer sua bondade para conosco e ver seu justo juízo contra os réprobos, quando os priva desta doutrina, como vemos no papado que os homens são bestas brutas, as quais são errantes e vagabundas pelos desertos, sem conservar-se no caminho ou na verdade. Ora, no que nos diz respeito, temos indubitável testemunho, o qual deve estimular ainda mais a estimarmos esta singular graça para conosco. E também, quando vemos alguns que possuem ouvidos surdos, embora ela [a graça] lhes seja declarada em termos familiares, e aquilo que é requisito para sua salvação lhes seja, por assim dizer, mastigado, contudo continuam sempre em seu estado; ou, melhor, não se deixam nem um pouquinho tocar, e não cessam de entregar-se a uma vida de licenciosidade, a despeito de Deus. Ao percebermos isto, é indubitável que nosso Senhor nos enlace a si mais fortemente, porquanto lhe agrada fazer-nos sentir sua bondade; degustarmos a esperança da salvação que ele declarou ser nossa; renunciarmos o mundo e quanto de fraqueza ainda existe em nós, porquanto somos saturados de vícios e corrupção. Não obstante, odiamos o mal que está em nós e nos deleitamos naquilo que é bom.

Quando, pois, tivermos isto, é indubitável que, se não formos mais duros que o ferro e o aço, teremos toda e qualquer rebelião despedaçada e desfeita; seremos inflamados com o amor de Deus; teremos nossa boca aberta para bendizer e louvar aquela tão excelente e magnificente graça que ele tem exibido para conosco. Vejamos, pois, a marca que a Escritura pôs diante de nós. Ora, no ínterim, estas pessoas de baixa e miserável disposição não tolerarão dizer: “Porventura Deus seria um discriminador de pessoas?”. De fato é como se Deus, em sua eleição, discriminasse entre ricos e pobres; é como se ele considerasse um nobre mais que um pobre, ou um sábio mais que um idiota. Notemos, pois, o que significa fazer acepção de pessoas. Este termo pessoa, na Santa Escritura, implica fisionomia ou semblança, e é assim que esta o usa. Deus, porém, nos escolhe não por nossos lindos olhos. “Quem pode discernir-te?”. Mencionamos ontem que Paulo declara que, quando Deus escolheu aqueles a quem lhe aprouve escolher, isto subjaz em seu eterno conselho, e em si mesmo, isto é, ele tem seus segredos aos quais devemos reverenciar, sem inquirirmos mais por quê. Já que isto é assim, é indubitável que não podemos dizer que ele faça acepção de pessoas. E os que falam assim são tolos, além da malícia que existe neles. Ora, pois, eles dirão: Como é possível que um seja salvo pela fé e o outro não, se tudo depende da eleição divina? No entanto, neste particular revelam sua grosseira bestialidade. Pois donde procede a própria fé, senão da eleição divina? Dizem: “As promessas de Deus são gerais, e Deus chama o mundo inteiro à salvação. Segue-se, pois, que o mundo inteiro será salvo. Sim, ele quer que o mundo inteiro seja salvo; mas isso significa que os réprobos serão inescusáveis. Pois as promessas de Deus indubitavelmente contêm nossa salvação, e não seremos enganados inclinando-nos para elas”. Então, devemos saber donde provém a fé que temos. Pois, quando o evangelho é pregado, por que então uns extraem dele proveito, e o recebem com a devida reverência e humildade de coração, e os demais não, mas, ao contrário, por meio dele se tornam ainda piores? Isto se deve ao fato de que os que foram ordenados para a salvação [At 13.48 — diz Lucas falando da pregação de Paulo] creram. Notemos que o pregador era Paulo. É indubitável que, se havia destreza num mestre fiel, esse foi Paulo, e, no entanto, nem todos eram bons alunos; ali, somente uma parte recebeu sua doutrina. Donde proveio isto? Proveio da própria indústria dos ouvintes? Foi porque eram mais bem dispostos? A verdade é que Deus abençoa a disposição. No entanto, que tal coisa não provém deles, Lucas mostra e aqui antecipa a incapacidade de todos os homens, e diz que creram todos quantos foram ordenados para a salvação. E notemos também o que nosso Senhor Jesus Cristo afirma: “De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” [Jo 6.40]. Ora, quando ele diz que lhe são dados por seu Pai, ele chama nossa atenção para aquela eleição eterna. E diz ainda em outro lugar: “Manifestei teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra” [Jo 17.6].

E donde procede que um pertence a Deus e o outro, não? Isto não diz respeito a nós que somos homens mortais. Pois nossa natureza é outra; todos nós fomos criados por um só Pai; no entanto, um pertence a Deus, e os demais são abandonados por ele, porque assim lhe aprouve. Ele reconhece e recebe um para si; e o outro, embora seja uma de suas criaturas, não obstante não tem nenhuma familiaridade com ele; ele não os aceita em sua família, porquanto os encerrara fora de sua eleição. Aqui, pois, vemos como a fé é um dom especial de Deus, a qual não procede de nosso livre-arbítrio, nem que possamos, de nós mesmos, avançar mais, e que alguns sejam mais aptos a compreender do que os demais; mas porque aprouve a Deus revelar seus segredos àqueles a quem ele elegera.

Portanto, vejamos ainda por que Isaías disse: “Quem creu em nossa pregação?” [Is 53.1]. Pois Isaías havia anunciado que nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitaria dentre os mortos; é como se ele abanasse a bandeira, declarando que todos viriam a ser reconciliados com Deus, e que os pobres pecadores seriam recebidos na misericórdia; que sua satisfação e justiça já estão prontas, e que Deus nada deseja senão usar de misericórdia para com aqueles que o buscam. Se Isaías houvera pregado assim, ele teria clamado: “Quem creu em nossa pregação”? Por que não? Porque em espírito ele visualizou a presunção e rebelião dos incrédulos, visto que não podiam submeter-se à ordenação divina; mas são selvagens e têm sempre sua boca aberta para replicarem contra Deus, e em seguida nutrem uma fantasia distorcida de que não podem obedecer. Ele mostra que sua doutrina não seria recebida pela maioria deles, e acrescenta a razão: que o braço de Deus, isto é, sua força e seu poder, não é revelado a todos; ele mostra que não está em nós termos movimento ou acolhimento, ou preparação, ou algo desse gênero; mas que é Deus quem opera aí. Ora, se em geral é assim, segue-se, pois, que a fé procede desta raiz da eleição divina. Ora, no tocante aos demais, quando tivermos entendido isto, não há dúvida de que sepultaríamos toda aquela instrução que nosso Senhor nos tem ministrado na Santa Escritura. Porque, depois de nos haver declarado sua vontade, ele nos exorta, nos reprova e nos ameaça. Se fôssemos como estes renegados que dizem: “A que propósito tu nos pregas tanto, se Deus já nos elegeu e escolheu para si, e não mais poderemos perecer; e, se formos réprobos, de que nos valerá toda a doutrina que já ouvimos?”. Sim, mas todos concordam muito bem quando não avançamos além dos limites.

Já dissemos que a fé procede da eleição. Então, do modo como Deus nos escolheu, também nos chama no tempo, como mais adiante examinaremos isso com mais amplitude. Pois o espaço ali servirá com mais propriedade. Mas, seja como for, Deus não se contradiz; e assim como nos testifica que é por sua graciosa misericórdia que ele nos ilumina pela fé de seu evangelho, e no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo, assim ele quer que andemos em temor e prudência, de modo que nos deixemos tocar por suas ameaças e sejamos congregados por ele, segundo a sua vontade. E, deveras, observemos estas duas sentenças: que os homens, com sua impudência e temeridade, pensariam ser isto contraditório; e, não obstante, concordam muito bem entre si com o que Jesus Cristo disse: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” [Mt 11.28].

Notamos como todos nós somos convidados pelo Filho de Deus, e não só dois ou três, mas todos em geral. Pois ele disse: “Vinde a mim, todos os que estais sobrecarregados”; e ainda em outro lugar: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” [Jo 6.44].

Ninguém, pois, pode ir a Jesus Cristo, a menos que seja atraído pelo Pai celestial. É como se isto fosse contrário, sim, que ele julgasse daí em conformidade com a razão humana, isto é, que Jesus Cristo convida a si a todos nós; e adiciona mais que ninguém pode ir a ele, a menos que o Pai o atraia a si. Muito bem, mas (como eu já disse) quando Deus geralmente põe a salvação diante de nós, em Jesus Cristo, seu Filho unigênito, é para tornar os réprobos ainda mais inescusáveis por sua ingratidão, visto que têm desprezado tão grande benefício; no ínterim os eleitos são tocados, e Deus não só lhes fala externamente, mas também interiormente. E assim vemos por que em outro lugar nosso Senhor Jesus Cristo diz: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” [Jo 6.44].

Mas, como eu já disse, quando o evangelho é pregado no nome de Deus, é como se ele mesmo falasse em sua própria pessoa, e, no entanto, nem todos se achegam a Jesus Cristo. Um grande número recua ainda mais, assim que ouvem o evangelho; pois então o diabo lhes acende uma fúria tal, que se tornam ainda mais ultrajantes do que antes, e isso sucede porque há um duplo auditório: a um se prega, porém a voz de um homem não penetrará nos corações de seus ouvintes. Eu falo, porém cumpre que eu ouça o que me é ensinado pelo Espírito de Deus. Pois, de outro modo, a palavra que procede de minha boca não me aproveitaria mais do que ela faz em todos os demais, exceto que ela me seja dada lá do alto, e não proceda de minha própria cabeça. Portanto, a voz de um homem nada é senão sons que se desvanecem no ar, e, não obstante, ela é o poder de Deus para a salvação de todos os crentes (no dizer de Paulo). Quando, pois, Deus nos fala pela boca de homens, então ele agrega a graça interior de seu Santo Espírito, para que a doutrina não seja destituída de proveito, senão que produza fruto. Vemos, pois, como ouvimos o Pai celestial, ou, seja, quando ele nos fala secretamente por seu Espírito Santo, e então nos achegamos ao nosso Senhor Jesus Cristo.

Notemos, pois, a suma do que já aprendemos, a saber, quando Deus nos declara sua eterna eleição, e que ele nos deu tal testemunho para que não duvidemos dela, quando ele nos mostrar que este é o nosso benefício e salvação, e que não assumamos demasiada liberdade de altercar contra ele e entrar em disputas azedas e contraditórias das quais não nos advirá qualquer proveito. Pois é certo que este é o genuíno regozijo dos fiéis: serem eles instruídos sobre esta eleição divina. Demais, quando virmos os perversos lançarem suas cavilações contra Deus, e suas calúnias a tudo pervertendo, e mantendo esta doutrina em ódio, não achemos isto estranho, pois é preciso que eles sejam declarados réprobos. Eu já disse que devemos repousar-nos no eterno conselho de Deus, por meio do qual ele escolheu a alguns e preteriu a outros. Se agora os réprobos deflagram guerra contra a verdade de Deus, isso não é uma coisa nova. Pois já foram designados para isto, e é preciso que sejam declarados como tais; e devemos evocar à mente aquela sentença de Oséias [Os 14.9], a qual está expressa no final deste Livro: “Porque os caminhos do Senhor são retos, e os justos andarão neles, mas os transgressores neles cairão”. Notemos ainda o que vem logo antes: “Quem é sábio, que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba”.

O profeta mostra que, quando falamos dos juízos de Deus, é preciso que tenhamos uma sabedoria especial para os recebermos; e porventura esta sabedoria estaria em todos os nossos cérebros? Longe disso. Assim, pois, convém que tenhamos uma sabedoria que nos seja dada pela mera misericórdia de Deus.

Ora, aquilo que segue visa a mostrar-nos que é uma coisa rara e mui excelente quando os homens são suscetíveis à instrução e modestos, quando se submetem à liderança de Deus e se deixam governar por sua palavra; quando recebem aquela instrução completa que lhes for um bom alimento para suas almas. Quando isso se concretiza, é preciso que se reconheça ser este um raro e singular benefício de Deus, e deve assegurar-nos de que ele nos abençoou. E, portanto, cumpre que sejamos armados e preparados contra todas as ofensas. Se percebermos que os perversos saem a campo, empurrando Deus com seus chifres, e ladrando e arreganhando seus dentes como enormes e poderosos cães, quando não conseguem morder, então que pratiquemos esta doutrina do profeta, quando diz que os caminhos de Deus são justos e bons, sim, que os justos andarão neles. Descobriremos sempre isto: que não possuímos um espírito malicioso e atrevido, e que pode afastar-nos de Deus. Ao contrário, sejamos serenos, e nada peçamos, senão que nosso Senhor nos mostre a vereda que devemos seguir. Quando agirmos assim, é indubitável que sempre acharemos terreno sólido, e não haverá dúvida de que andaremos em paz e acharemos nossa felicidade. Repito que teremos alegria quando andarmos nos caminhos do Senhor, mas, por outro lado, lemos que os perversos tropeçarão. Onde? Seria no inferno? Seria no caminho dos demônios? Lemos que será nos próprios caminhos de Deus, que tudo o que lhes for descrito dos juízos de Deus, de seu eterno conselho, desta providência e de seu amor paterno, ele proverá para seus filhos. Em tudo isto (diz ele) os perversos tropeçarão. Então, sejamos de tal modo estabelecidos que todas as ruínas e quedas que virmos diante de nossos olhos não nos impeçam de marchar sempre em frente naquele bom caminho que nosso Senhor puser à nossa frente. Cumpre-nos, porém, em todo tempo lembrar aquilo que aqui é mencionado por Moisés. E eis o que ele diz expressamente: “Um povo será mais forte que o outro, e o mais velho servirá ao mais moço” [Gn 25.23].

Ao falar do mais forte, o intuito é mostrar-nos que, quando a eleição divina é visualizada como sólida e indubitável, e que somos sustentados por seu Santo Espírito, já não devemos nutrir medo; e este é um ponto mui proveitoso; sim, indispensável. Pois qual é nossa condição? Aqui nem há necessidade de uma lufada de vento para nos arremessar ao chão, e basta um pequeno inseto para ofuscar nossos olhos; e, no entanto, somos aqui expostos a tantos combates, que não precisa de nada mais. Eis nossos inimigos que são em número quase infinito; sem falar dos que vemos com nossos próprios olhos, mas de inimigos espirituais. Pois o ar está saturado de demônios, os quais ficam à nossa espreita, sim, os quais são como leões que rugem, sem contar suas perseguições. Ah! o que seremos capazes de fazer? Por que deveríamos viver em angústia e aperturas, continuamente e sem fim, e viver como pessoas pobres sendo totalmente massacradas, se não soubéssemos que nosso Senhor tem nossa salvação na palma de sua mão e que a guardará? Pedro diz que ela [a salvação] é bem guardada em esperança, e que a fé é como se fosse uma bolsa, porém nos remete a Deus. E nosso Senhor Jesus Cristo nos declarou isto de modo ainda mais claro, quando disse que todos quantos lhe foram dados por seu Pai, não perecerão. Por quê? “Aquilo que o Pai me deu [diz ele] é maior que tudo; e da mão do Pai ninguém pode tirar” [Jo 10.29]. Assim, pois, ele diz que podemos alegrar-nos no fato de que Deus terá compaixão de nós até o fim, e que ele nos guardará. E se bem que ele permite que nos humilhemos, sim, a ponto de cairmos, contudo seremos restaurados e sustentados por sua mão. E como podemos confiar nisto? Sem eleição, é impossível; mas, quando sabemos que o Pai nos confiou à guarda de seu Filho, estamos certos de que seremos mantidos por ele até o fim. Pois temos sua promessa pela qual ele se obriga de nos preservar; e, mais, ele faz isso até o último dia, até a ressurreição. E, já que o princípio e o fim de nossa salvação estão nele, é nele que nos regozijamos. Equivale dizer que, em reconhecimento de nossa fraqueza e fragilidade, e que nada somos, e que carecemos de todas as coisas, contudo podemos dizer: o Senhor que me chamou a si concluirá sua própria obra, como lemos no Salmo 138: “Se ando em meio à tribulação, tu me refazes a vida; estendes a mão contra a ira de meus inimigos; tua destra me salva” [v. 7].

Assim, pois, devemos reter firme esta doutrina de que seremos mais fortes, porque nossa fé permanecerá vitoriosa acima do mundo inteiro. E como? Cumpre-nos, repito, ter nosso fundamento na eleição divina, para que sejamos estabelecidos aí; para que saibamos que nosso Senhor é o nosso Pai e não permitirá que pereçamos, porquanto somos seus filhos. Ora, Moisés logo adiciona que o mais velho serviria ao mais moço. Nisto temos uma confirmação ainda mais ampla daquilo que eu acabo de mencionar, a saber, que devemos viver tão seguros de nossa salvação, que não tenhamos dúvida dela ainda que sejamos fracos, e que o mundo nos despreze, e que não tenhamos maior demonstração de força. Por quê? Porque Deus quer que, por algum tempo, sejamos menos importantes; ou, seja, que sejamos pequenos e desprezados para que sua glória seja mais conhecida e estimada. Pois se em nós mesmos possuímos grandeza e glória, bem como dignidade, é indubitável que estas serão como véus a projetar sombras sobre a mera e livre liberalidade de Deus; mas, quando em nós mesmos somos fracos, por essa razão se percebe que é ele quem realiza tudo; e seria necessário que sua mão se projete de tal sorte, que não sejamos emaranhados a esse respeito, e que não permitamos que as nuvens impeçam que o louvor de nossa salvação lhe seja totalmente atribuído.

Observemos, pois, que aqui temos de aprender que, de um lado, ainda quando somos fracos, não deixamos de seguir em frente livremente, sabendo que nossa força está em Deus; e quando ele não a revela plenamente, isso se deve ao fato de que nossa fraqueza é uma ocasião para ele nos humilhar. Vemos isto por um prisma primordial. E em cada ato seríamos frios, sim, e totalmente negligentes para invocá-lo, se não conhecêssemos nossa necessidade; mas, quando vemos que nada podemos fazer, então devemos buscar nosso refúgio naquele que pode suprir todas as nossas necessidades; e então lhe ofereceremos um sacrifício de louvor, que lhe devemos, depois que o tivermos ouvido. Entrementes, temos ainda que notar que Deus, à primeira vista, não revela nossa salvação à visão dos olhos, senão que se acha oculta na aparência, e que por algum tempo somos como que proscritos, e que os perversos nos calcam sob a planta de seus pés, e que em grau eles são, sem comparação, mais elevados que nós. Não obstante, que nos seja suficiente o fato de sermos como um precioso tesouro diante de Deus. Essa é também a razão por que nosso Senhor Jesus Cristo disse: “Não temais, ó pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino” [Lc 12.32].

Observemos, pois, donde procede todo nosso regozijo; notemos de quem devemos armar-nos para que tenhamos a vitória e triunfar contra toda tentação. Quando em nossos dias vemos os inimigos do evangelho, e os demônios patronos, fazendo fanfarronices, e não fazendo conta de outros em comparação consigo mesmos, e quando, no ínterim, nos desprezam; e não apenas isso, mas, pior, nos consideram como sendo as criaturas mais desesperadas, como se fôssemos indignos (como dizem) de ser devorados por cães. Quando, pois, virmos isto em nossos dias, sim, que o maior número será como pobres esfomeados, e que não terão nenhum pão que comer, que não terão lazer nem comodidade, lembremo-nos de que aqui temos a declaração de que o mais velho serviria ao mais moço. Pois veremos mais adiante que Jacó se curvou ante seu irmão, e o chamou “meu senhor”; diante dele tremeu como um mísero cordeiro, e então lhe deu todos os seus bens como despojo. E onde estava esta sujeição de Esaú? Onde estava a superioridade de Jacó, quando se submeteu dessa maneira? É como se ele se rendesse de vez; porém ele bem sabe que Deus não concretizaria isto no primeiro dia. Observemos, pois, por que ele suportou sua pobreza com tanta resignação — porque Deus queria (como se fosse possível dizer) que ele se arrastasse pela terra, e, no entanto, não seria impedido, mas que sempre atingiria aquela salvação para a qual ele fora chamado. Por quê? Porque Deus não depende das coisas terrenas. E, ainda mais (como eu já disse), ele quer que comecemos aqui: humilhando-nos diante dele, seguindo o que eu afirmei ser procedente da boca de nosso Senhor Jesus Cristo, para que nosso Pai celestial se agrade de nós, para que não sejamos tomados pelo resto, ou, melhor, que não fiquemos tão abalados, que isto nos deprave e assim nos destrua o sabor, e assim sejamos desestimulados de fazer o bem. Mas que não duvidemos de que em meio a todas as tribulações e tristezas nos suceda que extraiamos daí nossa alegria. Pois quem nos separará do amor que Deus tem por nós em Cristo nosso Senhor?

Visto que Deus nos escolheu em nosso Senhor Jesus Cristo, e que nos chamou à fé de seu evangelho, e imprimiu em nossos corações o testemunho de seu paternal amor, desafiaremos sempre nossos inimigos, ainda quando sejamos pobres e frágeis, sim, ainda quando sejamos uma nulidade, na opinião comum dos homens; contudo, não cessaremos de apoiar-nos nesta promessa: “O maior servirá ao mais moço”. E, visto ser assim, não pretendamos ser grandes segundo o mundo; pois embora sejamos desprezíveis e desprezados, contudo isso não nos impede de sermos os herdeiros do mundo; ainda quando não possuamos terras nem possessões, não obstante todas as coisas já nos pertencem; e, contrário aos ímpios, os quais têm uma horrível e pesada conta a prestar, pois de tal modo devoram os benefícios de Deus, e de tal modo se regozijam das riquezas que lhes foram dadas, e, no entanto, não glorificam a Deus nelas. Todavia, pagarão o valor total por elas. E, no que nos diz respeito, embora vivamos despidos de todas as riquezas, enfrentando opróbrio e desgraça, em suma, que não haja nada em nós além de pobreza, não obstante, visto sabermos que sua mão está sempre estendida sobre nós, podemos gloriar-nos contra todos os nossos inimigos. E, no ínterim, recordemos aquilo que está escrito em Isaías [Is 62.3], que somos como que uma preciosa coroa na mão do Senhor, e como o anel de seu dedo, e como seu selo, não no Egito nem na África; ou, seja, as maiores monarquias do mundo não são tão sublimemente estimadas por ele como nós o somos; não por algum valor que porventura haja em nós (como eu já disse), mas porque lhe aprouve escolher-nos e conservar-nos no número daqueles a quem ele quis ter por seus. E sabemos disto, porquanto vemos, através da fé e da esperança, que ele nos arrancou para fora daqueles abismos nos quais vivíamos, a fim de tomarmos posse da herança eterna.

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